segunda-feira, 30 de junho de 2014

Colocar o mundo no mudo



Imagem: Reprodução

Recebemos diariamente frases que tem como objetivo nos fazer refletir sobre nossas ações, decisões, pensamentos. É uma enxorrada de expressões que nos trazem à realidade, ou fazem refletir nos seres que realmente devemos, ou queremos, ser. Mas uma, especialmente, me chamou a atenção. ‘Coloca o mundo no mudo e escuta o seu coração!’ Curioso! Levando em consideração que o coração muitas vezes é traiçoeiro, verteria o final da frase para ‘ouça sua consciência’. Acredito que seria mais sensato. O coração costuma ser muito implusivo, para não dizer indisciplinado. Mas a questão não é essa. O que me chamou a atenção foi ‘colocar o mundo no mudo’. Este é deveras um exercício difícil. Há alguns dias coloquei o mundo no mudo, antes de conhecer essa frase. Mas meu planeta interno estava muito mais barulhento que o mundo externo. Era uma porção de vozes incompreensíveis, barulhentas, questionadoras, agitadas, exigentes, eloquentes. Colocar o mundo no mudo! Como calar todas aquelas vozes aparentemente incontroláveis? Muitas vezes estamos tão acostumados com a zoeira diária que o silêncio torna-se perturbador. Mas o silêncio é necessário, nele conseguimos nos concentrar,definir melhor nossas ações, esclarecer algumas nossas muitas dúvidas. Não estamos habituados à tranquilidade, acho que já falei sobre isso. Esse assunto me parece tão recorrente que se não escrevi, expressei verbalmente várias vezes nas rodas de conversas entre amigos. Colocar o mundo no mudo! Um desafio que temos de enfrentar para encarar tudo racionalmente, com mais serenidade. Acho que jamais esquecerei essa frase. Quando colocamos o mundo no mudo a nossa consciência grita. E como grita! Isso faz parte de um exercício diário, quanto mais nos silenciarmos tanto mais nossa consciência se acalmará. Até chegar o ponto dela se tranquilizar quando o som do mundo estiver desligado. Aí alcançaremos o equilíbrio. Nosso equilíbrio é controlar, e poder viver, o silêncio. É bom silenciar o mundo que dita tantas regras, cada uma de acordo com seus interesses. Um mundo que berra descontroladamente. O mundo é um dos principais culpados pelo nosso descontrole, nossos maiores confrontos internos. Mundo, vasto mundo, como disse bem Drummond. Colocar o mundo no mudo! Desejo que se torne rotina.

domingo, 29 de junho de 2014

Consulta com a solidão


Imagem: Reprodução


E seguimos rodeados de pessoas e, ainda assim, sós. A solidão é um mistério que ainda não consegui compreender. É uma espécie de vazio que não consigo definir, mesmo que tudo pareça externamente preenchido. Acredito que ninguém compreenda. Como pode? Nos momentos de desespero, os mais sombrios, sentimos o que é solidão. Ninguém parece se importar com nossas provações, dificuldades. Apesar de muitos dizerem que há um amanhã nada parece ser o suficiente. Este é o momento que travamos nossas mais relevantes lutas. A batalha interna é o que nos faz fortes. Precisamos nos vencer todos os dias, principalmente quando solitários. E fica a pergunta: nos momentos turbulentos, mais difíceis, quem estará contigo? Você mesmo. Assumindo total responsabilidade por seus atos. Talvez o instante mais transparente conosco mesmo. Temos o péssimo hábito de nos esconder, não dos outros, mas de nossa própria essência. Ai! A solidão... É-nos muito útil. Muitos não creem, mas é. Há determinadas cenas em que precisamos nos retirar, permitir que as lágrimas caiam descontroladamente, ou que o sorriso nasça naturalmente. Estar no estado de solidão é como sair de si e diagnosticar se tem percorrido o caminho certo. Se o que está fazendo é o que realmente esperava. Hora de acertar os passos. Pedir desculpas para si mesmo. Agradecer a si mesmo. Ter aquele monólogo necessário. Por que será que as pessoas tem tanto medo dessa autoanálise? Podemos crescer tanto. Se ocupar e desejar sempre alguém à sua volta é ter medo de si mesmo. E isso é muito perigoso, nada saudável. Por isso, me retiro sempre, mesmo diante de muitos seres. Não é questão de desrespeito com quem  está na minha presença, mas parte fundamental para que continue a existir na essência. Sempre serei verdade se continuar a me consultar com minha solidão. Tudo faz mais sentido quando me aproprio dela por um tempo determinado. E depois serei mais um nessa grande multidão de seres elevados, multidão de solitários.

sábado, 28 de junho de 2014

Manobra de recomeço


Imagem: Reprodução


Começar de novo. Todos nós temos essa oportunidade, pelo menos uma vez na vida. Queremos que nossas relações sejam duradouras. Vez por outra essas relações terminam, ou ocorre uma pausa. Ou nos prendemos dentro de um planeta particular para fugir da realidade. Muitos quando percebem que a estrada está difícil, e sem retorno, resolvem correr para o acostamento. Miguel me ensinou isso através de uma de suas curiosas personagens. Mas é preciso recomeçar. Aliás, recomeçamos todos os dias, assim como também morremos todos os dias. Já falei sobre isso anteriormente. Recomeçar é sinônimo de ressuscitar. Ter a oportunidade de fazer novo de novo, realizar diferente, seguir o caminho que não quisemos seguir da primeira vez. Mas isso não quer necessariamente dizer que estivemos de tudo errado. Tudo é uma questão de ponto de vista. A mesma estrela cadente não cai, morre, duas vezes. Não diferente disso, não desejamos fazer as mesmas escolhas que nos conduziram para o recomeço. Pois queremos sempre acertar. Mas, vez por outra é preciso retornar, digo, recomeçar. Às vezes tenho a impressão que o mundo está louco demais para tal manobra. Por isso as pessoas seguem desenfreadas suas trilhas pessoais. Esses têm medo de não chegar ao objetivo se não correrem. Grande bobagem! Todos nós iremos chegar ao fim dessa grande estrada. Uns menos exaustos que outros por terem a paciência de parar, ver que aquele não era o caminho e redefinirem a rota. A arte do viver necessita de algumas vírgulas – já escrevi sobre isso também -, redefinições, coragem, humildade. Eis o ponto fundamental! Só recomeça sem medo quem tem humildade. Reiniciar exige o reconhecimento de escolhas mal sucedidas. É um grande aprendizado! Sem dizer que recomeçar é mais fácil. Já carregamos conosco toda a experiência do que foi vivido. Estamos capacitados para romper barreiras que antes não parecia possível. E se for preciso recomeçar novamente o faremos, pois sabemos que de alguma forma chegaremos ao nosso destino.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Cântico negro




Imagem: Reprodução

José Régio

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?


Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.


Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...


Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.


Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!


José Régio
, pseudônimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista "Presença", e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, foi, no entanto, como poeta. que primeiramente se impôs e a mais larga audiência depois atingiu. Com o livro de estréia — "Poemas de Deus e do Diabo" (1925) — apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Esperança é o que mais dói

Imagem: Repeodução


Fabrício Carpinejar

É me acomodar no avião e já adormeço. Nem espero o comissário fechar as portas.

Durante conexão de Galeão para Salgado Filho, escorado na janela, pronto para babar, escuto uma mulher chorando na poltrona da frente.

Sempre vou acordar quando ouvir uma mulher chorando. Meu sono não resiste a mulher chorando.

Ela soluçava ao telefone:

– Você disse que a gente moraria junto depois que terminasse seu treinamento. Você mentiu, você só está me enrolando com promessas. Promessa dói. Esperança dói.

Não alcançava qual o contexto da conversa, mas sua frase produziu muito sentido.

Esperança dói!

Eu quase chorava junto. Ela estava coberta de sentimento mais do que coberta de razão.

Concordava com ela: não minta com esperanças. Minta com qualquer outro sentimento, menos com esperança. Não ofereça esperança se não acredita na relação.

Pense bem antes de falar, pense se realmente deseja cada verbo. Cuidado com aquilo que sonha em voz alta.

Todas as palavras são estrelas cadentes. Prometer é sério, prometer é se comprometer.

Não adianta dizer que só falou, alegar que não fez nada de errado e lavar as mãos no vento. Falar é fazer.

Entenda que a esperança é o que mais machuca. Não há maior tortura do que gerar esperança em vão: é oferecer para tirar.

Não estimule projetos se não está disposto a cumprir, se não é sincero, se não é verdadeiro.

Não diga da boca para fora pelo prazer da hora, pelo romantismo, pelo arrebatamento.

Imaginar já é concretizar. Se não tem segurança com sua companhia, não iluda. Não fique fantasiando casa própria, filhos, cachorro, viagens ao Exterior. Não insufle o porvir para agradar. Não disfarce o pouco sentimento com a eternidade. Não chame o futuro impunemente. Não apele para a emoção à toa.

A fantasia é uma responsabilidade do casal. Pois o amor é o que se vive somado ao que se conversa somado ao que se planeja.

Ao fortalecer intenções, permite que ela ou ele passe a esperar dali por diante.

Somos crianças no amor, ansiosas pela confirmação das expectativas. Enxergamos o que imaginamos, trabalhamos para conseguir o que imaginamos.

Esperança é também parte importante do namoro. Esperança é também lembrança do namoro. Esperança é também memória do namoro. Esperança é também realidade do namoro.

O que foi idealizado a dois é um patrimônio da intimidade, um marco da confiança.

Ninguém sofre numa separação por aquilo que aconteceu, sofrerá por aquilo que não vai mais acontecer. Sofrerá pela perda da esperança mais do que pela perda do amor.

Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 24/6/2014
Porto Alegre (RS), Edição N° 17839

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Minha relação com a vírgula


Imagem: Reprodução


Tenho uma amiga que não perde a oportunidade de dizer que sou um homem cheio de teorias. Acredito que todos sejam. O que tenho mesmo é o hábito de abrir um monte de portas e não fechar nenhuma. Quando estava no Ensino Médio fiz um texto na aula de redação que pensei ser a obra prima de todos os meus trabalhos escolares. Toda minha dedicação, pesquisa, leituras, influências estavam ali. Todo o meu pensamento e reflexão condensado nas poucas linhas daquela folha. Tinha certeza de que seria bem avaliado por aquele exercício. Doce engano! O professor disse que faltavam vírgulas. Não compreendi, mas aceitei a disciplina. Ele sabia o que dizia, apesar de ser exageradamente exigente. Passei a prestar mais atenção às pontuações. Passei a utilizar a vírgula descompassadamente. Já na faculdade, no último período, uma das professoras que mais admirava elogiou minhas redações e pediu para que tomasse cuidado com o excesso de vírgulas. Aquelas palavras ecoaram em meus pensamentos por um longo tempo. ‘Tome cuidado com as vírgulas!’ Desde então, relacionei as vírgulas com minhas constantes pausas para reflexão, mania de enumerar coisas e acontecimentos, aquele hábito de abrir várias portas e não fechar nenhuma, tentar explicar o que não consigo. É como se ela tivesse me aconselhado: ‘Muito cuidado com seus pensamentos, teorias. Há portas que merecem estar sempre fechadas. Tais portas uma vez abertas inquietam toda nossa existência.’ Ela até hoje não sabe que interpretei assim aquele simples conselho ortográfico. Mais tarde, ao ter como companheira de trabalho uma professora de Português pude perceber que minha ligação com a vírgula era ainda mais forte que imaginava. Num momento de conversa na sala dos professores, ela me falava o quanto achava ser exagerada no uso de vírgulas. Apaixonei-me instantaneamente por aquele ser. Era como se estivesse me vendo no espelho. E como é bom perceber que não está sozinho neste vasto mundo! Nosso debate a esse respeito disso foi valioso, proveitoso. Ponderamos e rimos muito. Acredito que se alguém disser que ama vírgula pesará muito mais que dizer ‘eu te amo’. Amo vírgula! E uso porque amo pensar, pausar, enumerar, considerar, explicar, teorizar... Gosto que as portas estejam abertas para passar livremente por todas elas. Seria interessante causar uma grande revolução ortográfica e tornar obrigatório o uso de vírgulas sem medidas. Até mesmo colocá-la no lugar do ponto final. Que loucura! Para isso existe a reticências. Mas essa é outra história, outra relação...

terça-feira, 24 de junho de 2014

Sou uma criança, não entendo nada



Imagem: Reprodução


Vez por outra nos vemos com a alma atarantada. Ouvindo a canção de Erasmo e Roberto Carlos, fiquei refletindo o quanto somos imaturos ao envelhecer. Quando somos crianças podemos nos exceder, falar e agir de forma errada. Podemos errar na medida do sentimento e tudo permanece na linha da beleza. Afinal, o papel da criança é sempre ser uma ‘graça’. Assim fica razoavelmente fácil. Julgamos as ações dos pequenos como se não compreendessem nada. Na realidade, quando recobramos a memória infantil lembramos o quanto éramos conscientes na maioria de nossas ações. Ao passo que nos desenvolvemos emocionalmente as coisas, situações, parecem fazer todo o sentido. Exigem-nos maturidade. A questão é que, retomando a canção de Erasmo e Roberto, regredimos, simbolicamente falando. Ocorre aí um paradoxo. Os nossos problemas nos fazem ficar sérios e aparentemente entendedores de tudo. Mas por dentro somos apenas crianças e não entendemos absolutamente nada. Interessante como vez por outra a vida - às vezes tenho a impressão que trato a vida como uma pessoa literal - nos leva de volta ao passado com personagens diferentes. Como se tivéssemos sido um ser diferente com cada indivíduo que cruzou nosso caminho. Aliás, somos diferentes para cada pessoa. Fez-me recordar um poema lindo de Fernando Pessoa que diz que somos aquilo com quem simpatizamos. Podemos ser uma pedra, uma ânsia, uma flor, uma ideia abstrata, uma multidão, uma forma de compreender Deus. Simpatizamos com tudo, vivemos tudo. Pessoa estava coberto de razão! De volta à personagem, os impressionantes capítulos desse grande livro que fazemos parte ressuscitou um ser que muito admirei, observei e convivi. Há muita verdade quando dizem que há pessoas que podemos ficar um longo tempo sem ver que ainda assim perece ter se despedido há minutos atrás. E exatamente do ponto de despedida consigo compreender suas ações, mas não as voltas que sua história teve. Há uma complexidade no desenrolar dos acontecimentos. E aí me mostro imaturo como a criança para um adulto. Mas sempre fica a certeza de que as coisas irão terminar bem. Afinal, fui treinado desde muito jovem para isso. De que serviram os contos de fadas, aulas de literatura, livros de romance? Para crer que na vida tudo acaba bem e tem uma explicação. E eu creio!