domingo, 31 de agosto de 2014

“Pensei que era uma preta qualquer.”





Passou 13 de maio e eu fiquei pensando nessa mancha, nessa barbárie, nesse holocausto que aconteceu com o povo negro e que se mistura à história da construção desse país. De todos os problemas idiossincráticos da nação, de todos os traços emocionalmente comprometidos do cidadão brasileiro, de todas as amarras que costumam permear o pensamento mais atrasado da evolução humana, considero o preconceito racial o mais torpe e o mais cruel. Está na base da nossa educação, está na palavra do professor, na escolha de quem vai ser a princesinha na festa da escola, de quem vai ser o chefe, a miss, o padre. Está no critério do juiz, nas ações policiais, na rua, nos escritórios, nos hospitais. Em todo canto o povo negro é olhado de revés. Como se fosse uma gente de segunda categoria. Referenciada nos princípios hitlerianos, a estética exemplar oficial considera feio o nariz negro, ruim o seu cabelo, suja a sua cor. Lástima. Sei do que estou falando, conheço o tema, tenho vários grupos sociais e encontro no meu meio social, na minha classe artística, no meu bairro muito mais gente branca do que gente negra. É preciso cautela e reflexão e coragem para abordar esse tema porque de alguma maneira o preconceito racial e a discriminação continuam sendo ensinados e perpetuados sem que percebamos. A escravidão foi traumática, a tortura era o método principal usada abundantemente por 4 séculos. Nenhum país com uma história dessa pode seguir em frente sem um tratamento, sem sentar no divã. O negro era vendido a metro! Então, se uma peça de negro, como um tecido, fosse de 1,80m por exemplo, comprava-se um negro de 1,70 m e podia- se completar com uma criança de 20 centímetros. Talvez devêssemos trazer essa história para o cinema, o Brasil precisa assistir ao filme da sua vida assim como sabemos tanto sobre a guerra do Vietnã e sobre os campos de concentração onde foram mortos os judeus. Precisamos botar essa história na tela. Falta-nos Espelho, não é a toa que o nosso querido e inteligente Lázaro Ramos tem um programa no Canal Brasil com esse nome. Olhemos as nossas mídias, as bancas de jornal... em todas as searas, a maioria avassaladora dos que chegam “lá” é branca. Poderia ser um acaso num país multirracial? Poderia, mas não é. Funda-se isso. Criamos essa realidade à medida que nosso contingente de pobres no Brasil se mistura também com os números de negros. Existem muitos negros, milhares que vivem bem, é claro, mas o que digo é que a maioria dos pobres é negra e se eles não têm escola boa, saneamento básico, o ensino de uma arte para que se traduza e amplie o seu olhar sobre o seu tempo, ele vai continuar um escravo urbano, condenado ao subemprego, sem a ascensão do tamanho do seu sonho, sem respeito e sem contribuir em outras esferas para o avanço da sociedade. Isso está tão engendrado em nosso comportamento que eu vejo crianças que se sentem patroas dos filhos das empregadas. Errado. Criança não é patrão e nem empregado de ninguém. O fato do meu pai ser patrão da doméstica não faz do filho dela meu empregado também. Repara bem como isso acontece a toda hora e nem se comenta. Um amigo meu adotou três filhos, um gay, um negro e um com Síndrome de Down. Preocupou-se em especial com o Down que é uma formação que costuma provocar rejeição dos outros. A estranheza foi perceber nos parques, nos teatros, nos aniversários, nos lugares onde leva as crianças, que o campeão do bullying era o negro. Aliás, toda criança negra e brasileira sabe o que é bullying, mas nunca se chamou de bullying o eterno caçoar aos negros. Estou incomodando? Se estou, não é culpa minha, é o que acontece quando levantamos o tapete e não há como fugir do acúmulo do que ali está entulhado sistematicamente. Continuamos bradando que vivemos numa democracia racial mesmo sabendo que da totalidade dos jovens que morrem no Brasil, 80 % são negros e de periferia. Pertencem a categoria da vida dos que não valem. Um dia perguntaram ao rapper Mano Brown: “mas como saber, num país tão misturado, quem é negro e quem não é? E ele respondeu: “a polícia sempre sabe.” Estou feliz com as bananas nos gramados. Trata-se de uma manifestação explícita de racismo, esse sórdido pensamento brasileiro que precisa sair do armário, isso, exponha-se. O racismo no futebol vem revelar a verdade que querem esconder, escamotear: não é econômico, como querem muitos, porque quem tem recebido banana ganha milhões. O que está acontecendo? Sinto-me protegida porque sou artista e o “status” de uma pessoa que muitos conhecem pela arte dá uma protegida na gente e diminui o impacto. Mas sou flagrantemente negra. E quando, de vez em quando, acontece um “escorregão” da parte do discriminador, ele se corrige e diz: “ai, eu não sabia que era você.” Ou seja, coitada da minha prima, dos meus amigos negros e vizinhos, coitado do país que é anônimo. Se a pessoa acabasse de falar, ela diria: “pensei que era uma preta qualquer”, mas ela não diz. Sorri, ajuda a orfanatos, ganha status por sua caridade, vai a igreja aos domingos, tem nojo da empregada dela. Acha que sua família é mais importante do que aquele quilombo, que mora na favela e cuja rainha desce o morro todo o dia para fazer a sua comida, arrumar a casa, varrer. 13 de maio, levante o tapete.
 
 - Elisa Lucinda

sábado, 30 de agosto de 2014

Professora com Síndrome de Down recusa ‘rótulo’: ‘Especial é minha mãe’

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Imagem: Reprodução
 

Mãe da jovem conta que não imaginava que ela chegaria aonde chegou: ‘É duro dizer, mas quando ela nasceu, achava que se ela morresse seria melhor’

Débora Seabra, portadora da Síndrome de Down, superou todos os desafios que a vida lhe impôs e provou que é possível realizar um sonho apesar de todas as limitações. A jovem de 33 anos é a única professora com Down que se tem notícia no Brasil. Ela atuou como professora voluntária durante 10 anos e agora foi contratada oficialmente por uma escola de educação infantil de Natal, no Rio Grande do Norte.
No palco do Encontro, após ver imagens de sua performance em sala de aula, Débora contou que antes de ser professora era modelo, fez teatro, desfilava e disse ainda que adora dar aula. Ela aproveitou para afirmar que não gosta de ser chamada de especial: “Especial é a minha mãe, minha família toda, eles são meu porto seguro”.
 Margarida, a mãe da jovem, também esteve no programa e contou que nunca imaginou que a filha faria o que faz hoje: “Não meço esforços para democratizar essa autonomia que ela conquistou. É muito duro dizer isso, mas quando ela nasceu, eu achava que se ela morresse seria  a melhor solução. Eu demorei a entender que eu não queria que ela morresse, que eu queria que a síndrome morresse”.
Orgulhosa das conquistas da filha, Margarida enche a boca para falar da evolução de Débora. “A fala de Débora é um grito de esperança para outras pessoas. Quando ela diz que não quer ser chamada de especial, é que ela entendeu que é especial para a família. Por isso sempre lutei para que ela estudasse em escolas regulares e convivesse com outras pessoas, escola especial é discriminatória, é crime”, afirmou.
Fonte: Gshow

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sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Procurador federal é condenado por racismo: “Odeio judeus, negros e, principalmente, nordestinos”


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Imagem: Reprodução

 

Mensagens eram de ódio a judeus, negros e nordestinos; decisão é inédita.
Réu disse à Justiça que comentários foram ‘brincadeira’; cabe recurso.

A 3ª Vara Criminal de Brasília condenou o procurador federal Leonardo Lício do Couto pelo crime de racismo, com base em comentários públicados em um fórum de concursos públicos na internet. Nas mensagens postadas em 2007, o então estudante se autointitulava “skinhead” e pregava ódio a judeus, negros e nordestinos.
Procurado pela reportagem do G1, o procurador preferiu não comentar o assunto, e afirmou que vai recorrer da decisão.
Segundo o promotor de Justiça e coordenador do Núcleo de Enfrentamento à Discriminação do MP, Thiago Pierobom, é a primeira condenação do tipo registrada na Justiça do DF com base em comentários publicados na internet.
Durante o julgamento, Couto confessou ser autor das mensagens, mas disse que eram “apenas uma brincadeira”. No entendimento do Ministério Público, autor da denúncia, o conteúdo discriminatório é intolerável.
“O réu era formado em direito e, na época, prestava concurso para procurador federal. Não há como alegar que ele não sabia que estava praticando um crime”, afirma Pierobom.
Os dois anos de prisão previstos na sentença inicial serão substituídos por pena alternativa, que ainda será definida. Além disso, o procurador foi condenado a uma multa de 20 salários minimos.
A Advocacia-Geral da União (AGU), órgão a que está vinculada a Procuradoria Geral Federal, não quis comentar o assunto.

‘Escória da sociedade’
 
Na troca de mensagens registrada em 2007, outro usuário chega a questionar se os comentários são brincadeira, mas a hipótese é negada por Couto.
“Na verdade, não sou apenas anti-semita. Sou Skinhead. Odeio judeus, negros e, principalmente, nordestinos; [...] Não, não. Falo sério mesmo. Odeio a gentalha a qual me referi. O ARGÜI deve pertencer a um desses grupos que formam a escória da sociedade”, dizem as mensagens publicadas.
O coordenador do núcleo antidiscriminação do TJDFT diz acreditar que uma falsa sensação de anonimato levou o réu a publicar as ofensas na internet. “As pessoas acreditam que estão seguras, mas deixam uma série de pistas que facilitam a identificação”.
Ainda segundo Pierobom, o procurador federal não deve sofrer punição administrativa pela Procuradoria ou pela AGU, porque os atos foram cometidos antes da posse no cargo.

Clique aqui para ler a sentença.

Leia a matéria completa em: Procurador federal é condenado por racismo: "Odeio judeus, negros e, principalmente, nordestinos" - Portal Geledés
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quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Quem ama tem um quê de guarda-costas



  - por Ricardo Coiro
Imagem: O Guarda-Costas (Divulgação)
Hoje de manhã – diferente das primeiras vezes em que a levei até o lar dela – eu só consegui me sentir aliviado depois de tê-la visto fechar, em total segurança, o portão que separa o Edifício Arminda da parte pública – e supostamente mais perigosa – do mundo. Após o beijo de “tchau” e antes que ela tivesse tempo para sair do meu carro, eu fiz a varredura visual dos poucos metros que a separavam da porta para a qual ela estava prestes a se dirigir – exatamente como faz um guarda-costas profissional. E, felizmente, não identifiquei elementos suspeitos ou possíveis ameaças àquela que amo. Mas continuei de olhos arregalados, atento aos mínimos passos dela e pronto para entrar em ação caso algum meliante, tarado, cão raivoso, abelha teleguiada, barata voadora ou camelô insistente resolvesse ameaçá-la. Mas nada ocorreu. Ela apenas fechou o portão de ferro, virou-se para mim e acenou sem fazer alarde ou descolar o cotovelo do corpo; e, assim que a luz do farol ficou verde, pude perceber que ela fitou o meu carro até onde a miopia dela permitiu.
E se está me achando um baita de um exagerado graças ao que descrevi no parágrafo acima, você, caro leitor, certamente não ama ninguém e, obviamente, nunca amou. Porque o amor, irmão, sempre nos torna seres zelosos e extremamente preocupados com o bem-estar daquele (a) que amamos.
E o meu zelo pela moça que amo não se limita às vezes em que a deixo em frente ao prédio no qual ela mora; meu cuidado vai muito além: quando estamos em um show, por exemplo, muitas vezes, ao invés de olhar para o palco, eu permaneço atento aos potenciais focos de confusão. E sabe por que eu faço isso? Não faço por mim, óbvio! E sim para aumentar as chances de conseguir protegê-la caso comece um corre-corre ou um quebra-pau.
E quando ela engasga (...) então? Tirando o uso do vocativo “bem”, que me parece um pouco antiquado, eu digo as mesmas palavras (“Beba água, bem! Passou? Beba mais! Passou? Erga os braços! Passou?”) que a minha avó diz ao meu vô que – mesmo depois de anos de treino – ainda insiste em engasgar em todas as refeições.
E nas vezes em que ela, antes de rumar ao trabalho, beija-me a testa e pisa manso para não me acordar, por amor e só por ele, eu sempre consigo arrumar forças para abrir as pálpebras e analisar se ela está bem agasalhada e com os cabelos secos. E se ela por acaso estiver com a vasta cabeleira úmida, com a voz embriagada de quem está sonado por ter ficado dentro do Netflix até altas da madruga, eu invento: “O secador de cabelo não atrapalha o meu sono, cabeção!”. E tento, sempre em vão, voltar ao mesmo sonho. Ou fugir do velho pesado.
É, pensando bem, talvez eu seja demasiadamente zeloso. Mas, e daí? Se leio as contraindicações dos remédios que os doutores apressados a mandam tomar, é por amá-la a ponto de não querer vê-la, em hipótese alguma, sentindo qualquer efeito colateral ruim. Se displicentemente entrego o meu peito, de bandeja, ao vento gelado da madrugada, é por não suportar vê-la tremendo de frio. E se fico triste a cada vez em que a ouço dizer que está sem saco para se cuidar, é, com certeza, por saber que muito depende também dela.
Se quando a gente gosta é claro que a gente cuida – como bem diz a música Sozinho – fica bem fácil de imaginar (mas impossível de medir!) o tamanho do zelo de quem ama.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

A Pazinha



Fabrício Carpinejar

Sempre fui fã de varrer. Vassourar não é um ato gentil, de empurrar a palha com cuidado submisso pelo chão.

Aquele que dança vagarosamente com o cabo mata o tempo, imagina passos de samba, jamais limpa.

A vassoura pede gestos bruscos e firmes. É para socar o solo, com obsessão de boxeador. A agressividade é o único jeito de recolher a sujeira do canto e espantar o pó.

A vassoura é uma trabalheira do inferno, de gente dura e fervorosa, por isso que zeladores optam por usar a mangueira para evitar o desgaste excessivo do pulso.

Quem pensa que varrer é proeza da delicadeza nunca faxinou um pátio.

Repare no gari de sua rua, ele transforma a vassoura em uma enxada, tamanha a força que empenha em seus braços.

Não dá mole para baganas, papéis grudados e chicletes. Finca a cabeleira sarará nas frestas do meio-fio, sem medo de quebrar o vento.

É heavy metal, é trash, é de uma crueldade ritmada.

Eu tenho medo de encostar o dedo no uniforme laranja, romper sua concentração e receber um tapa involuntário. Seria muito mais amistoso interromper o transe de um sonâmbulo.

Desde cedo, eu identifiquei a vocação violenta do hábito.

Recorria à vassourada como uma terapia, minha tarefa caseira de sexta-feira.

Suava, cansava os ombros, exorcizava a energia maldita.

Um dos primeiros sinais de minha independência foi quando descobri a possibilidade de varrer e segurar a pazinha ao mesmo tempo. Tinha dez anos no instante em que equilibrei a vassoura numa mão e a pazinha noutra. Meio por acaso, meio aloprado pela pressa. E consegui depositar a sujeira inteira para dentro do vão. Aquilo mexeu comigo. Era como levantar o guincho de uma retroescavadeira.

As palavras se tornaram maiúsculas naquela manhã. Adquiria um superpoder, uma tecnologia avançada. Abobado, comemorei a repentina emancipação.

Antes dependia dos outros para terminar a missão. Recolhia as folhas do quintal, os ciscos, os abacates podres e esperava que a mãe ou algum irmão viesse me socorrer. Identificava a pazinha como um embargo, atrasava invariavelmente o futebol e as brincadeiras com o playmobil. Depois de gritar por apoio, mofava no terceiro degrau da área de serviço: horas mortas, baldias, desnecessárias.

Quando pude realizar tudo sem a ajuda de ninguém, eu me vi maduro. Finalmente podia morar sozinho, estava pronto para ficar solteiro mais do que casar.

Foi um dos poucos momentos de solteirice em minha vida.

Publicado no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
27/08/2014

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Casa alugada na praia

Imagem: Reprodução




Fabricio Carpinejar



Não possuir uma casa no litoral tinha seu valor.
Nunca sabíamos onde passaríamos o verão.
Nem o paradeiro, muito menos o endereço. Dependia da finança paterna.
Quando sobrava dinheiro, rumávamos para Santa Catarina. Quando faltava, íamos pelas praias mais próximas, como Pinhal e Cidreira.
Era uma surpresa constante.
O pai arrumava as malas, ajeitava o caos no bagageiro, reclamava que não veria nada pelo retrovisor e não abria nenhuma informação do nosso destino. Ele nos levava no escuro até o local que escolheu.
Brincávamos de cabra-cega durante o percurso.
Onde será? Quantas quadras do mar? Toda casa que enxergávamos pela janela poderia ser a nossa.
Eu me emocionava só de imaginar, nem precisava acontecer.
Os pais preferiam alugar e eu também.
Porque despertava uma competição alegre entre os irmãos.
Quem ficará com o melhor quarto, a melhor vista, o melhor esconderijo?
A entrada pela porta gerava uma corrida desesperada de inspeção.
– É meu, é meu, é meu! – os quatro filhos subiam as escadas e apontavam sem parar.
Não olhávamos direito o conjunto, invadíamos cada cama com a sanha de Colombos, Américos, Cabrais da orla, descobridores de novas terras e civilizações. Com o grito, queríamos garantir a prioridade da escolha.
Não deveria ser simples distribuir os lugares. Desencadeava decepção e piquete:
– Mãe, não vale, pedi primeiro!
Nossa justificativa infantil estava estruturada em pedir primeiro e depois fazer manha.
Vinha um sentimento confuso e misterioso na hora de ocupar o imóvel. Bendito e maldito, prazeroso e melancólico.
Era entrar numa residência totalmente desconhecida e mobiliada. O aluguel apenas civilizava o nosso roubo.
Desfrutaríamos de 30 dias para encarnar uma segunda família, já que a nossa não havia dado muito certo.
Não tirávamos férias somente de espaço e de tempo, mas também de personalidade.
Experimentávamos uma decoração diferente, costumes diferentes, um arranjo doméstico diferente, de quem a gente nem ouviu falar.
A mãe abria as gavetas para avaliar os talheres, abria as despensas para julgar panelas e pratos. Quando reconhecia algo bom, exclamava:
– Nossa, vai facilitar a vida!
Tanto que não carregava meus brinquedos na viagem, com exceção da bola.
Encontrava bicicleta de pneu furado, baldes e geringonças de crianças no depósito.
Alugar residência na praia significava herdar a infância de um outro menino.
Fingia não ser eu, colecionava cartas, perdia tardes consertando jogos, esquecia o meu futuro cuidando do passado de alguém.
Mantenho esse esquisito e fascinante veraneio dentro de mim. Consciente de que o mar nunca foi meu, sempre tive que devolvê-lo quando chegava março.



Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 26/8/2014
Porto Alegre (RS), Edição N° 17903

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Fotografia: a escravidão moderna que fingimos não ver

Projeto fotográfico tocante registra a escravidão moderna que fingimos não ver

escravidão fotos
Projeto fotográfico tocante registra a escravidão moderna que fingimos não ver. (Todas as fotos por Lisa Kristine)

Jaque Barbosa, Hypeness

Facilmente caímos na tentação de pensar que a nossa liberdade e direitos são coisa garantida, esquecendo que há pessoas para quem isso não passa de um sonho. Lisa Kristine pôs o dedo na ferida de forma extraordinária: documentando a escravidão moderna, aquela que fingimos não saber que existe.
A ativista está há 28 anos retratando culturas indígenas ao redor do mundo, mas foi em 2009 que ‘acordou’ para o problema da escravidão dos nossos dias. A estimativa de que existem mais de 27 milhões de pessoas escravizadas e a sua falta de conhecimento sobre o tema a envergonhavam.


Assim começou sua jornada, que acabou em Modern Day Slavery, uma série cativante e ao mesmo tempo dolorosa. Seja um mineiro no Congo ou um trabalhador de olaria no Nepal, a escravidão existe e tem rostos. Lisa foi conhecê-los.
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(Foto: Lisa Kristine)
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(Foto: Lisa Kristine)
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(Foto: Lisa Kristine)
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(Foto: Lisa Kristine)
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(Foto: Lisa Kristine)
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(Foto: Lisa Kristine)

Na sua intervenção na conferência TED, em janeiro de 2012, a fotógrafa deixa o alerta, com episódios e imagens impressionantes.

Vídeo:


Fonte: Pragmatismo Político

domingo, 24 de agosto de 2014

Eu Maior

Olhe ao seu redor – quantas pessoas estão na busca da felicidade? Quantas pessoas tiveram coragem de abandonar o que a sociedade esperava deles, para ir ao encontro do que realmente gostam? Quantas pessoas estão revendo suas escolhas – tanto na área pessoal e profissional, quanto na área dos relacionamentos? Temos o privilégio de podermos viver nessa era tão transformadora, na qual basta um olhar mais atento para perceber que uma revolução está acontecendo e que não – não somos mais os mesmos, e não vivemos como os nossos pais.

No entanto, essa busca pelo que realmente significa para cada um nunca é fácil. Sair da zona de conforto significa enfrentar de perto seus fantasmas, seus medos, suas dúvidas. Significa desapontar pessoas que tinham expectativas sobre você, significa dizer para a sociedade que não, você não é e não vai ser aquilo que eles esperam de você. A trajetória do despertar é dolorosa, mas os frutos colhidos são absolutamente recompensadores.
Nós aqui do Hypeness adoramos tudo que tenha a ver com inspiração e também com busca de felicidade. Por isso, um tempo atrás, contamos para vocês sobre um filme incrível sobre felicidade e autoconhecimento que estava em processo de produção – o “Eu Maior.” O filme traz uma reflexão contemporânea sobre esses temas, por meio de entrevistas com expoentes de diferentes áreas, incluindo líderes espirituais, intelectuais, artistas, esportistas, entre outros.
O filme foi lançado dia 21/11, em diversas plataformas, e o mais bacana é que foi disponibilizado pelos criadores na íntegra no Youtube. Ou seja – prepare a pipoca, um lugar bem confortável, e aperte o play:

Fonte: Hypeness

sábado, 23 de agosto de 2014

Lições diárias

Imagem: Reprodução



''Há uma "tribo" africana que tem um costume muito bonito.
Quando alguém faz algo prejudicial e errado, eles levam a pessoa para o centro da aldeia, e toda a tribo vem e o rodeia. Durante dois dias, eles vão dizer ao homem todas as coisas boas que ele já fez.
A tribo acredita que cada ser humano vem ao mundo como um ser bom. Cada um de nós desejando segurança, amor, paz, felicidade. Mas às vezes, na busca dessas coisas, as pessoas cometem erros.
A comunidade enxerga aqueles erros como um grito de socorro.
Eles se unem então para erguê-lo, para reconectá-lo com sua verdadeira natureza, para lembrá-lo quem ele realmente é, até que ele se lembre totalmente da verdade da qual ele tinha se desconectado temporariamente: "Eu sou bom".
Sawabona Shikoba! (É uma palavra de origem zulu)
SAWABONA, é um cumprimento usado na África do Sul e quer dizer:
"Eu te respeito, eu te valorizo. Você é importante pra mim"
Em resposta as pessoas dizem SHIKOBA,que é:
"Então, eu existo pra você"

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

...

“Desidentificar-se do passado significa que ele deixa de exercer poder sobre você. O passado continua sendo seu passado, mas você não mais se identifica com ele. Ele pode até ser uma fonte de inspiração e de conhecimento que você utiliza de acordo com a sua necessidade, mas ele deixa de ser um dreno de energia e de consciência. O passado deixa de roubar a sua presença. Porém, isso só é possível quando você se harmoniza com ele.”
  - Sri Prem Baba

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Fazer mais que o prometido, pode não dar em nada?

Todo mundo já passou por uma situação assim: você está sentado em sua mesa de trabalho quando seu chefe repassa uma demanda. Pode ser algo simples ou um grande projeto que vai exigir meses de dedicação, mas o desfecho raramente foge destes três cenários.
No primeiro dos cenários, um problema aconteceu ao longo da execução e a entrega é comprometida. Não restou muita opção além de bater na porta do chefe e informar que o projeto não vai ser concluído. O combinado não será cumprido.
Na segunda opção, tudo corre como planejado, você entrega o combinado e não recebe nem obrigado. Sua obrigação é essa.
O terceiro e mais trágico dos cenários começa com boa vontade. Ao invés de apenas executar, você resolveu dar uma enfeitada, ir além do solicitado e fazer um agrado. Mas quando foi avisar que havia terminado, seu chefe acenou com a cabeça e pediu para dar licença, ele está atrasado para uma reunião. Nem deu atenção para o esforço extra investido. Dando a sensação de que nada daquilo valeu a pena.
Um artigo da Folha de São Paulo nos trouxe a confirmação destes cenários. O estudo mencionado aponta que quebrar uma promessa ou acordo gera nítida frustração, mas fazer além do combinado não parece afetar os níveis de satisfação em comparação com os que fazem apenas o combinado.
Ou seja, aquele agrado extra para um chefe ou cliente pouco será notado, não valendo a pena.
Mas será mesmo?
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“Tá, obrigado.”
O problema de observar estudos científicos de forma fria, principalmente se tratando de ciência comportamental, é a dificuldade de representar o mesmo resultado em outros cenários que vão além do escopo construído pelo estudo. Quem lê a notícia focado no cenário imediatista, recebe o sinal de que não vale a pena tentar ir além. Isso desmotiva os que se propõem a agradar um pouco mais. Só que nem tudo é preto no branco e, por isso, recomendo olhar um pouco mais afundo nesta perspectiva.
O primeiro ponto a se entender aqui é a expectativa de quem está executando o acordo. Sempre que fazemos algo esperando qualquer tipo de reação em troca, mesmo que seja apenas um agradecimento mais caloroso, o resultado provável será frustração, uma vez que é bem difícil estimar precisamente qualquer retorno. Acho que essa é uma provável causa para o estudo apontar não valer a pena.
Entretanto, o que acontece quando vamos além por nós mesmos? Pela simples garantia de não fazer algo abaixo do que nós mesmos gostaríamos, de estar dando tudo o que podemos.
Quem faz além, o faz pela chance de ver um sorriso extra, saber que não deixou alguém na mão e que, mesmo que algo não tenha sido solicitado, é importante observar que as vezes foi até por falta de atenção de quem pediu. Que seu dever como ser consciente é cobrir todos os furos, caso contrário estará entregando o que foi pedido, mas foi omisso em algo que ninguém mais viu, só você.
Meu trabalho atual envolve desenvolvimento de produtos e grande parte do esforço aplicado é criando elementos que não fazem parte do produto em si, que muitos clientes nem percebem, mas pra mim fazem toda diferença. Desde a caixa onde o produto vai, a etiqueta, enfeites e adesivos de brinde, tudo carrega uma mensagem unilateral de carinho e atenção. A maioria dos clientes não ligam pra isso, mas está tudo bem.
O importante é minha entrega e como me sinto através disso. O que fazemos uma expressão de como nos sentimos realizando aquela tarefa. Claro que eventualmente alguém reconhece, divulga algum elogio e fazem comentários, o que me deixa imensamente feliz, mas este é apenas um bônus de algo que fiz pela satisfação interior.
etiqueta
Utilizável como máscara ninja
Óbvio que, se tratando de trabalho e clientes, fazer mais do que a promessa pede tem outros benefícios que não podemos esquecer.
Existe muito ruído por aí, todo mundo disputando um lugar, atenção do cliente, oportunidade de trabalho, ser promovido, não ser demitido no downsize, qualquer coisa. O ruído é enorme e existem poucas formas de quebrá-lo, se diferenciando de quem só faz o básico. Deixando claro que isso não significa adicionar algo, às vezes apenas mudar a forma que os detalhes são apresentados pode fazer grande diferença.
Empresas têm investido rios de dinheiro procurando soluções para este fenômeno, algo que não apenas venda produtos, mas faça seu usuário sentir-se querido, não apenas falando acima da multidão, mas falando diretamente para o cliente e conquistando sua fidelização. Um cliente recentemente disse que “Dentro da caixa só faltou vir um abraço”, logo abaixo outro cliente adicionou: “Mas foi como se tivesse vindo.”
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Notícias como as da folha são muito perigosas. Tendemos a ler aquelas informações e vincular diretamente com nossa vontade de fazer menos ou até mesmo não fazer nada. Criando uma justificativa racional para nossa falta de atenção. Por isso, muitas vezes, é bom relembrar o discurso moderno de “fazer o que se ama”.
Quando fazemos algo por que sentimos vontade e prazer na ação, raramente precisamos nos preocupar se estamos fazendo o suficiente, menos ou além. Assim, o que fizermos vai naturalmente sair da melhor forma que conseguimos desenvolver, e se vai ser mais ou menos reconhecido é subjetivo a quem recebe.

Fonte: Papo de Homem

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

O mais absurdo dos vícios


Imagem: Reprodução



Fabrício Carpinejar

Se você acha que se apaixonar é ruim, existe algo muito pior: é se viciar em alguém.

É mais do que paixão: é vício mesmo.

Não terá saudade, mas abstinência.

Não terá memória, mas flashbacks.

Não ficará distraída, mas apagada.

Não conseguirá lidar com a paciência, com a calma, com a espera.

Você estará transtornada mais do que transformada.

Foi arrastada, muito além de um arrebatamento.

Sofrerá de dependência química das palavras, dos abraços, dos beijos.

Até a alegria será um desespero.

Você não calcula qual o motivo da ligação.

Odeia estar assim, mas ama estar assim, já que nunca esteve assim.

Só chama o outro de chato, irritante, insuportável, porém nada interrompe a proximidade.

Não tem como largá-lo. As justificativas que arruma para se distanciar acabam acelerando o próximo encontro.

Nenhuma desculpa produz distância, nenhum blefe, nenhuma ameaça, nenhuma cena de ciúme.

Você não terá razão porque já perdeu a razão.

Sua ânsia é por mais uma dose. Daquilo. Daquele jeito. Com aquela força.

Viverá na boca de fumo.

É capaz de vender seus bens, seu passado, as roupas, para sustentar o prazer.

Tudo é a maldita droga de estar junto. Não se importará com a opinião da família e dos amigos. Comprará briga com o mundo para pagar o vício.

Desmarcará compromissos, atenderá qualquer chamado. Pode surgir no meio da madrugada, no meio da manhã, no meio da tarde. Pois casa de traficante não tem hora.

Um "Eu te amo" não será suficiente: é "Eu preciso de você agora".

É um vício do corpo, do cheiro, da voz, do temperamento, que pode levar à loucura.

Vai emagrecer, não vai dormir, vai se isolar, vai se estranhar, vai chorar e rir ao mesmo tempo.

Há pessoas que viciam. Simplesmente viciam. E estará perdida para todo o sempre.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Para refletir...

"Tenho pensado nas pessoas que passam pela minha vida. Nas que vão e nas que ficam. Nas que somam e nas que subtraem. Nas que se aproximam pelas circunstâncias, mas principalmente nas que permanecem apesar delas.

Naquelas que clareiam o dia da gente, ora com uma palavra, ora simplesmente com um sorriso. Sei que a nossa vida nada mais é que uma ciranda e que tudo são fases.

E sou grata a todos que de uma maneira ou de outra, por pouco ou por muito, tenham feito parte da minha um dia. E sou mais grata ainda aos que fazem, aos que sei que farão sempre.

Mas tem me feito muito feliz a afinidade que tenho encontrado pelo caminho . Pessoas que até então não faziam parte da mesma estrada que eu, mas que agora espero que permaneçam por muito tempo na mesma ciranda. Elas nem imaginam o bem que me fazem."

 - Virginia Mello

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Sincericídio


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Imagem: Reprodução
Em tempos de amores líquidos, ataques sincericidas ou kamikaze love me tender.Há algum tempo, com algumas pessoas específicas, o termo "sincericídio" tem sido usado no sentido de que, em meio aos limites legais do que é crime em nossa sociedade, e o que foge da seara dessas frágeis arestas da legalidade, tem-se o marginalizado sentimento que, na maioria dos casos, predomina em qualquer tipo de ação, legal ou ilegal.
A tipificação do que, corriqueiramente, permeia o vocabulário e a mídia da legalidade, em sua margem, na qual encontramos as emoções, e assim como tudo que faz parte das relações, desde os tempos atávicos, os sentimentos desenfrados não escapam à responsabilização. Responsabilização que gera uma consequência difícil de suportar quando o limite da condenação por determinada emoção e sua ação, é o lidar consigo, propriamente, e sua parcela social. O sincericídio nada mais é que dar, gratuitamente, sua parcela sentimental de forma que o outro, psicanaliticamente, falando, o outro possa manejar e entender da forma pretendida, por si próprio, o que fazer com essas emoções, geralmente, atiradas em forma de palavras contra quem atingido e seu espaço social. Muitas vezes, os respingos molham desavisadas vítimas.
Quem comete o sincericídio em tempos de relações líquidas que evaporam noir é considerado análogo a um terrorista, mas em específico ao sentimento, um terrorista afetivo. O terrorismo é datado desde a Antiguidade. Os franceses utilizam muito a palavra "horror" para contar sua história. O sentimento causado por um terrorista é a ansiedade. Quando o domínio da palavra passa a ser do outro, o que ela vai sofrer em termos de entendimento e afetação, muitas vezes, com a dificuldade de comunicação com tantas opções de formas de expressão, vai ser o julgamento ou o jogamento no lixo das emoções. O outro ao não corresponder, não responder, não ser afetado pelas palavras serve como um aparato flexível, um boomerang que não absorverá o impacto e a palavra voltará de forma tão veloz e de intensidade equivalentes que o maior atingido será seu próprio parlante.
Muitas pessoas sofrem de sincerícidio. Elas não conseguem se neutralizar na modernidade dos afetos e saem armadas de palavras. Ao avistarem um possível e, muitas vezes, não correspondido, alvo para sua pontaria, atiram. Entre mortos e feridos, o saldo pode ser avaliado como o mais do mais de si mesmo.
Terrorista kamikaze (palavras ao vento é um clichê indispensável) love me tender é um novo termo específico para quem munido de palavras, não desiste de se afetar.

domingo, 17 de agosto de 2014

Sobre a rosa e a recusa



Um negro e uma negra
que perderam o parafuso
resolveram se amar
para perpetuar a raça,
mas só tinham a carne e o corpo
e o ar que era de graça.
Ah! Um negro e uma raça
resolveram apertar os parafusos
para não caírem em desgraça ...
ainda bem, ainda bem
que uma negra e sua carne
guardaram todo o ar
para respirar
sem afrouxar os parafusos
... porque o negro
... porque o negro
... o negro foi embora.

sábado, 16 de agosto de 2014

O que eu faço?



Fabricio Carpinejar












Imagem: Reprodução




Depois que virei palpiteiro amoroso, sou vítima dos esbarrões e dos conselhos a toda hora.

Por detrás de uma gentileza, pode vir um desabafo e aquela pergunta constrangedora ao final:

– O que eu faço?

Estou temendo cumprimentar na rua. Saúdo com “tudo bem?”, e o outro tem a audácia de replicar que não, emenda o que o vem afligindo e chora em meus ombros. Sinto que meu terno é um lenço de papel gigante. Hoje me escondo no costume de acenar com a cabeça e economizar entusiasmo.

Não sou terapeuta, não sou conselheiro, sou um escritor que observa a vida com fome e curiosidade e captura as contradições com facilidade. E só. Não tenho nenhum poder sobrenatural.

Mas, até me explicar, o desabafo já começou. Na dor, as pessoas falam rápido (a alegria, por sua vez, não precisa de muitas palavras).

Recebi uma carona na última semana. Era tarde, chovia, fazia frio, esperava um táxi que não chegava numa rua deserta, uma simpática mulher encostou e perguntou aonde ia.

– Petrópolis!

Ela sorriu:

– Estou indo para lá, vem?

Entrei no veículo, já arrependido. Como explicaria para minha esposa que tomei carona com uma estranha? Preventivamente, liguei o GPS do meu celular na hipótese de ela ser uma psicopata.

Ela nem esperou que comentasse sobre o tempo pavoroso naquela noite em Porto Alegre, desandou a narrar suas desventuras, o status nervoso de seu relacionamento, detalhou conversas, especificou suas expectativas.

– Sou casada há oito anos com um possessivo. “Não sou ciumento, sou possessivo”, diz ele, crendo que é beeem melhor... Eu tenho de obedecê-lo, me adequar a suas vontades e ser companheira com ZERO de reciprocidade!

Foi quando o painel digital de seu carro passou a piscar: anomalia de combustível.

– Visitar a minha família, frequentar a roda dos meus amigos, fazer os meus programas, nunca, sempre a vontade dele... Acabei me afastando de muitas pessoas queridas em função disso.

Foi quando o painel digital de seu carro passou a piscar: anomalia de air bag.

– Perdi minha essência, pois eu o sinto exatamente como um CHEFE! Inclusive eu brinco que sou sua secretária de luxo, pois ele está sempre me solicitando coisas.

Foi quando o painel digital de seu carro passou a piscar: anomalia de poluição.

– Ele não gosta de meu senso de humor, acaba incomodado por eu ser extrovertida e expansiva, me poda o tempo inteiro, odeia chegar aos lugares e notar que eu conheço metade do mundo e ele não. A impressão é que ele precisa me diminuir para brilhar.

Ao descer, ela me encarou, ansiosa:

– O que eu faço?

Só tive tempo de responder:

– Troca de carro!

Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 12/8/2014
Porto Alegre (RS), Edição N° 17888

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Queremos ser normais ou bem comportados?


Tivemos sorte por não ver visionários como Einstein, Newton e Beethoven em uma sala de aula. Com dificuldade de aprendizado, seriam transformados em bons alunos, diagnosticados e medicados

Einstein
Se medicado, Einstein seria um gênio?
“Foco” é a palavra de ordem nas escolas e no mercado de trabalho. Para vencer na vida, a dispersão de atenção para outros interesses além das tarefas do dia a dia é não apenas mal vista: é diagnosticável como um transtorno mental passível de cura. De acordo com uma ala da psiquiatria, essa ideia de “transtorno” parte de duas premissas. Uma é semântica. Ela suaviza a ideia de “doença mental” e passa a ser usada como uma espécie de identidade psíquica por meio de nomenclaturas como “TOC”, “TDAH”, “hiperatividade”, “bipolaridade”, “ansiedade” e “transtornos de humor”.
A outra dita que, por trás da desordem, existe uma ordem. Nesta ordem, o estudante estuda e o trabalhador trabalha. Em nome dela nos medicamos. Cada vez mais e, segundo especialistas, sem que sejam levados em conta os impactos, para as crianças e suas famílias, do diagnóstico e da medicação.
Quem analisa os índices de tratamento à base de drogas psicoativas imagina que o planeta enfrenta hoje uma “epidemia” de transtornos mentais. Nos EUA, uma em cada 76 pessoas são hoje consideradas incapacitadas por algum tipo de transtorno – em 1987, este índice era de uma em cada 184 americanos. O número de casos registrados aumentou 35 vezes desde então.
Segundo o Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA, 46% da população se enquadrariam nos critérios de doenças estabelecidos pela Associação Americana de Psiquiatria. Tais diagnósticos criaram um mercado poderoso de medicamentos psicoativos – o que significa medicar tanto pacientes com crises agudas de ansiedade até crianças diagnosticada com grau leve de “hiperatividade” ou “espectro de autismo”, a chamada síndrome de Asperger. Essas crianças precisam manter o “foco” na sala de aula se quiserem ter alguma chance de passar no vestibular.
A pressão sobre elas em um mundo cada vez mais competitivo cria um consumidor fidelizado: a criança que hoje precisa de medicamento para se manter em alerta será, no futuro, o adulto dependente de medicamentos para dormir. Essa pressão, apontam estudos, tem origem na sala de aula, passa pela sala da direção, chega aos pais como advertência e desemboca na sala do psiquiatra, incumbido da missão de enquadrar o sujeito a uma vida sem desordem.
Mas como cada categoria de transtorno mental é construída e delimitada? Quais pressupostos fazem com que determinados comportamentos e/ou estados emocionais sejam considerados normais e outros, não? Quem definiu que uma criança com foco na sala de aula é normal e uma desconcentrada é anormal? Qual é, enfim, a “ordem” que a prática psiquiátrica visa a garantir?
(...)
Se for esta a normalidade que tanto buscamos, o mundo teve sorte por não ver visionários como Bill Gates, Einstein, Newton e Beethoven em uma sala de aula nos dias atuais. Todos eles tinham dificuldade em socialização, comunicação e aprendizado. Sofriam, em algum grau, de espectro de autismo, e seriam facilmente transformados em bons alunos, diagnosticados, tratados e medicados. O mundo perderia quatro gênios, mas ganharia excelentes funcionários-padrão, contentes e domesticados.

 Fonte:  Carta Capital

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

maria eduarda, joão, pedro, josé, miguel


Imagem: Reprodução

a essas alturas, creio que não haja um ser vivente no brasil com acesso aos veículos de comunicação que não saiba que o eduardo campos morreu hoje pela manhã. eduardo teve cinco filhos com sua esposa, a renata: maria eduarda, joão, pedro, josé e miguel.
em meados de fevereiro de 2012, após entregar todos os meus alunos para seus responsáveis no portão da escola, recebi um chamado da minha coordenadora: ‘ju, a mãe do enzo morreu.’ eu havia acabado de entregar o enzo para a babá toda trabalhada na cara de paisagem, que não deixou entrever em nenhum momento que estava levando o enzo para a casa da tia para que ele e seus irmãos recebessem uma das piores notícias que um ser humano pode receber. o enzo e a camila, sua irmã gêmea, tinham quatro anos. o pietro, seu irmão mais velho, tinha seis.
a morte da mãe do enzo era esperada por todos. após uns dois anos lutando contra um câncer devastador, uma cama hospitalar havia sido instalada em um dormitório da casa, enfermeiros 24h haviam sido contratados, doses cavalares de analgésico começaram a ser ministradas diariamente e, enfim, todos passaram a conviver com a eminência do último suspiro daquela mãe que mal teve tempo de cuidar de seus próprios filhos. quando eu o conheci, o enzo era uma criança amorosa, doce, sensível e muito mais madura do que seu corpinho de quatro anos revelava. sorria pouco e logo se acabrunhava quando ria, como quem tem culpa ou vergonha de se divertir. falava baixo, muito baixo, do jeito que só quem viu sua casa se tornar um hospital fala.
após a morte, o enzo demorou umas duas semanas para voltar a escola. uns dias antes da data marcada, sentei em roda com as crianças para explicar para elas o que havia acontecido:
eu: pessoal, quem sabe o que é morrer?
- é quando a pessoa não existe mais.
- é quando a gente vira estrelinha.
- meu vô morreu.
- meu peixe morreu e a gente enterrou numa caixinha na pracinha.
- meu peixe também morreu e minha mãe jogou na privada!
eu: HAHAHAAHAHAHA é a cara da sua mãe jogar o peixe na privada, amor!
- a mãe do enzo morreu, né teacher?
eu: como você sabe, amor?
- minha mãe me contou.
eu: então, pessoal. é verdade. a mãe do enzo morreu. ela virou estrelinha no céu.
conversamos um tanto esse dia. sobre mamães, sobre morrer, sobre ser legal, atencioso e querido com quem acabou de perder a mãe. foi a deixa, também, para eu contar para eles que o meu pai também era uma estrelinha no céu. quando o enzo voltou para a escola, ele correu na minha direção e disse:
- teacher, eu faltei muito porque a minha mãe morreu.
- não tem problema, amor. eu também faltei muito na escola quando o meu pai morreu.
criamos, eu e o enzo, uma espécie de irmandade-orfã na classe. foi bom para ele saber que não era o único que havia vivenciado a experiência terrível que é perder pai ou mãe. quando o assunto vinha à tona, ele sempre dava um jeito de soltar um ‘que nem seu pai, né teacher?’ que o reconfortava. ainda que ele tenha passado a rir com mais leveza e menos culpa e, no fim das contas, tenha se tornado uma criança que não convive com um doente terminal dentro de casa, quando ele parava quieto era possível perceber uma vaguidão no olhar, uma ausência, um buraco.
agora tem um monte de gente reclamando no facebook das piadinhas, comentários de mau gosto, intrigas etc sobre a morte do eduardo campos. como eu escolho meus amigos a dedo, ‘nunca vi nem comi eu só ouço falar’. mas tem, né? sempre tem, aos montes. e salvo o miguel, que tem três meses de idade, em algum momento os filhos do eduardo campos vão topar com alguns dos comentários de má-fé que estão rolando por essas timelines de meu deus. não bastasse a dor de perder seu pai, estes quatro jovens terão que conviver com a dor de ver sua morte como mote para que um sem número de pessoas destile seu veneno, seu ódio, sua ignorância e insensatez por aí. 
não sei quantos de vocês já perderam o pai ou a mãe. ou os dois. quem já perdeu, há de concordar comigo e com o enzo que essa dor a gente não deseja nem para o pior inimigo. amanhã ou depois, a maria eduarda, o joão, o pedro, o josé e o miguel vão enterrar seu pai e, aos poucos, reconstruir suas vidas com algumas vigas a menos. a gente sabe como é: a vaguidão, o buraco, as vigas, o menos. eu, o enzo, você e você. então, caso você tope com algum comentário maldoso sobre a morte do eduardo campos, dê nome aos bois. pratique a humanidade e a alteridade que dizem estarem perdidas. não estão, não, amig@, a não ser que você não as pratique.
então, pelo sim, pelo não, vamos lá, todos juntos, em uníssono: morreu a paula, mãe do pietro, da camila e do enzo. morreu o juarez, pai dessa que vos escreve. morreu o eduardo, pai da maria eduarda, do josé, do pedro, do joão e do miguel.


Fonte: Filosofinhas

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Seis fatos sobre depressão que todo mundo precisa saber


Morte de Robin Williams e Fausto Fanti levantam a questão sobre a doença que atinge mais de 350 milhões de pessoas no mundo

 

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Serial Lover



Imagem: Reprodução


Existe uma infidelidade mais secreta e menos evidente, que acontece depois do relacionamento. Só acontece depois. É uma traição póstuma, retardatária, residual.

É quando você repete os mesmo lugares, os mesmos apelos, as mesmas confidências com outro. É quando você insiste em escrever e tecer declarações exatamente iguais.

É uma extorsão sentimental colocar um desejo para sua nova companhia como se fosse inédito e que já foi dividido com a anterior.

Pois a paixão só é idêntica para quem não enxerga as diferenças.

É como remanejar presentes, aproveitar alianças antigas.

Você prova que não tem criatividade nenhuma, demonstra a maior apatia: refaz os passeios que já realizou, leva para os restaurantes que freqüentava, as baladas e festas conhecidas, reincide nos roteiros de viagem, destina sonhos e palavras já gastos, reemprega até os nomes aprovados para quando nascessem seus filhos.

Mudou a pessoa, mas não o seu jeito de seduzir. Mudou a pessoa, mas não sua rotina de amar. Mudou a pessoa, mas não seu script.

É uma melancólica sobreposição, desastrada colagem.

Nem precisa cometer o ato falho de trocar o nome do atual pelo ex, porque estará revisitando atmosferas e cenários. Experimenta locações contaminadas por juras velhas.

Não há sensação mais ingrata para seu namorado anterior ao perceber que era mais um. Um qualquer, nem um pouco especial. Um sósia de cenas românticas. Um dublê da adrenalina e dos feromônios.

Você oferece um passado usado sob o disfarce de futuro. Alcança aquilo que foi ensaiado com o antecessor. Não se dá o luxo de disfarçar, o trabalho de maquiar, colocar uma manta no mobiliário da memória.

Recorrendo à fórmula fixa de história feliz, estabelece uma competição imaginária, anula a individualidade do seu par, apaga a invenção a dois e a costura por caminhos surpreendentes e inesquecíveis.

Acredita em sua inocência porque ninguém comentará o assunto. Desfruta da tolerância dos garçons, dos colegas, dos amigos, dos parentes. É realmente um segredo com pequenas chances de ser revelado, porém a consciência não é boba e um dia se vinga.

O que vive está longe de ser amor, é obsessão.

 



Publicado na Revista IstoÉ Gente
Agosto de 2014 p. 48
Ano 14 Número 711
Colunista