quarta-feira, 11 de junho de 2014

Nunca Disse o quanto amei



Por Miguel Falabella:

Imagem: Reprodução

A coisa começou por causa de uma mariposa que estava se debatendo na pia, provavelmente queimada depois do choque com a lâmpada – o inevitável encontro entre mariposas e luzes. Uma das asas desaparecera - nunca mais o vôo ao encontro da chama – sempre na direção da luz, como se ali, engolida por ela, pudesse voltar a ser lagarta, como se ali encontrasse outra vez a segurança do casulo. Achei que deveria abreviar-lhe o sofrimento e atirei um jato de inseticida sobre seu corpo. A agonia demorou mais do que supunha e acabei sendo espectador de seus últimos espasmos.
Isso, é claro, mudou definitivamente o rumo da crônica que, a princípio, assim eu acreditava, versaria sobre alguém que cavalgava na direção do sol. O insólito momento, entretanto - eu, nu, prestes a entrar no banho, e a mariposa morrendo na bacia de pedra polida – afastou a lembrança de quem cavalgava em silhueta para longe, que era a história que eu iria contar, antes do assassinato.
Parado, olhando o estranho balé do inseto na pia clara, eu pensei que o medo começa no desencanto da tarefa incompleta. Ou na raiva da palavra nunca dita. Ou ainda no desespero do amor que foi se embora. E por isso nos assombram o breu, a solidão e a paz fria do esquecimento – só porque acreditamos, em algum momento da história, que o amor nos traria a eternidade. Mas os nossos pequenos e cotidianos assassinatos estão sempre trazendo a lembrança da finitude dos dias – como os dessa mariposa que se contorce envenenada. Quando enfim desfez-se a miragem na areia, lembramos do tempo e sentimos medo. Depois que a porta se fechou e fez-se silêncio no aposento. Depois que você olhou pelo olho mágico e percebeu que o saguão já estava vazio. Depois que a sua respiração soou como um soluço quebrado. Depois de tudo, vem o medo.
Era nisso que eu pensava, testando a temperatura da água com as mãos, antes de entrar no banho, um pé no tapete, o outro na pedra fria. Debaixo d´água, ultimamente, tenho tido lembranças de medos futuros, eu esfregava a pele e reconhecia a carne. O momento existencialista no chuveiro não quis que eu murmurasse as canções de sempre, não permitiu que a intimidade do banho liberasse o canto – aliás, os banhos de inverno têm me trazido imagens estranhas que não descem pelo ralo com a espuma, ficam sentadas nas prateleiras, protegidas dos respingos, ao lado das essências. Alguns instantâneos, entre os frascos, vêm surgindo no meio da bruma em que o banheiro fica mergulhado. Alguns pedaços do mosaico, algumas portas que se abrem.
Há uma grande quantidade de estampas, no quarto que visito – a capa de um romance para moças, a heroína com os cabelos ao vento, amparada pelo galã de casaca. A novela tinha sido abandonada por uma moça de cabelos negros, sobre o banco da praça. Ela trabalhava na farmácia, vivia pendurada no balcão e tinha o olhar assustado de quem se apercebeu da velocidade com que a vida corre, quando se está atrás de um balcão de subúrbio e a cabeça cheia de amores impossíveis. Pois era sobre isso o livro que a moça esquecia. Corcéis selvagens, damas e cavalheiros, embriagados de um amor tão sublime, tão cheio de adjetivos e beijos de intensa paixão sob o teto florido de madressilvas. Alguma coisa do gênero.
Eu estava brincando por ali, correndo, e encontrei o exemplar. Ainda sacudi o livro nas mãos, tentando lhe chamar a atenção, mas ela não percebeu e entrou no ônibus. Levei o livro para casa, uma edição ordinária, meio ensebada, as páginas de papel barato manchadas aqui e ali. Chamava-se Nunca disse o quanto amei e o desenho da capa parece que brilha por entre a névoa, recortado na cerâmica da parede. Li algumas partes, não consegui ir adiante e, no dia seguinte, devolvi à moça, que me agradeceu e ponto final.
Não sei quanto tempo depois disso, mas, um dia, eu estava subindo no ônibus e alguém comentou que a moça da farmácia tinha morrido. Tinha comido formicida. Lembro que deixei o olhar ficar para trás, enquanto o ônibus avançava, buscando a porta da farmácia, como se ela pudesse aparecer ali, os cabelos ao vento como a moça da capa da novela romântica. Ficou comigo, portanto, essa imagem de mulher debruçada sobre o balcão, o olhar perdido em terras que ela jamais conheceria. Eu era muito menino. O ônibus sacolejava e eu pensava na agonia da moça da farmácia, sabedor de que jamais conheceria sua história. Pensava nela e na formicida. Meu avô tinha um saco no galpão das ferramentas. A moça comera o veneno, disseram que ela encheu a mão com o granulado vermelho e engoliu um punhado. Dela, só sei que nunca disse o quanto amou e que corria na direção de seu amado, gritando juras de amor, numa linguagem rebuscada, enquanto o sol morria num crepúsculo faiscante. Deve ter morrido de sonhar. De certo, foi esse o motivo. As coisas que a gente é capaz de pensar depois de matar uma mariposa.
Ah, sim! Só agora me lembrei de quem cavalgava na direção do sol. Mas essa história fica para a próxima semana. Tem dias que mais difícil do que dizer o quanto amamos é dizer adeus. Por enquanto, fiquemos no até breve. Mas é preciso aprender. Antes que seja tarde.

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