sábado, 31 de janeiro de 2015

E quando encontramos a pessoa certa no momento errado?



Na nossa imaginação, quando duas pessoas realmente se amam, elas podem superar tudo. Afinal, foi isso que aprendemos com todas as comédias românticas que assistimos ao longo da vida. Mas e quando descobrimos que na vida real nem sempre é assim? E quando descobrimos que amar e ser amado pode não ser o suficiente?


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Reprodução


Nós crescemos lendo em livros de romance como as pessoas se sentem quando amam, mas tudo parece meio exagerado. Como é que alguém pode fazer parte da gente? Como é possível sentir que encontramos o nosso lugar só porque estamos deitados abraçando aquela pessoa? Como a falta de alguém pode doer fisicamente? Nada daquilo jamais fez sentido na nossa cabeça. E ainda assim, passamos a sentir cada uma dessas coisas quando nos apaixonamos.
Mas o que acontece quando os dois se amam e ainda assim não dá certo? O que acontece quando é a pessoa certa no momento errado?
Nesses casos, chega um ponto em que temos que admitir que amar aquela pessoa não faz bem ou que aquele relacionamento não vai para lugar nenhum e precisamos tomar coragem para ir embora. Arrumamos desculpas para postergar o fim, mas ele está sempre à espreita, esperando apenas pronunciarmos as palavras. Até que um dia, finalmente conseguimos dizer: “Não consigo mais fazer isso”. E, como se essa frase tivesse algum poder mágico, tudo se acaba. O nosso mundo desaba e temos a sensação de que a pessoa levou embora uma parte nossa.
E então choramos. Não um choro de quem foi machucado, como na maioria dos términos. Não, choramos por tudo o que aquele relacionamento nunca terá a chance de ser, por todos os momentos que não poderemos ter. Choramos por uma história que acabou.
Eis que, após tantas lágrimas, o coração ainda fala. Ele grita acima do cérebro para insistirmos naquilo. Diz que quando se ama alguém, não é possível ignorar uma mínima chance de dar certo. Inunda a nossa cabeça falando que quem ama não se importa em se expor um pouco mais, mesmo que seja rejeitado, porque o arrependimento de não ter tentado é muito maior.
Nesse momento, ignoramos o nosso lado racional e corremos atrás de quem realmente queremos. Pode ser que acabe não dando certo. Pode ser que o timing realmente não fosse dos melhores. Mas só de saber que tentamos, já vale qualquer dor que possamos vir a sentir.
Tem gente que diz que um relacionamento termina bem quando não tem briga no final. Eu não acredito nisso. Para mim, ele termina bem quando sinto que faria tudo de novo, sofreria tudo de novo só para poder reviver todos os momentos bons. O meu ponto final é sentir que aquela história valeu a pena ter apostado todas as fichas, mesmo não tendo um “felizes para sempre” no fim.


Júlia Mattos

Apaixonada por boas histórias, sejam fictícias ou reais. Viciada em livros, filmes, séries, M&M's e Tic Tac de laranja.
Saiba como escrever na obvious.

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sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Quando a casa é ninho

Meus pais têm um vocabulário próprio: matar o cachorro a grito, chorumela, nem que a vaca tussa, onde fui amarrar meu bode, chispa daqui, é dose para elefante, firme na paçoca.
Traduzíamos mentalmente na infância e na adolescência.
Chover era toró, fazer xixi era tirar água do joelho, cansar de um assunto era pó da rabiola, lugar distante era caixa-prego, criança agitada era serelepe.
Eu e os irmãos vivíamos registrando as expressões, aperfeiçoando o dicionário oral, para não sermos ofendidos de mocorongos.
Havia um respeito obrigatório pela língua nativa. Ríamos no começo, depois aceitamos as excentricidades que destoavam do que aprendíamos na escola, em seguida entramos na fase da vergonha coletiva.  
Revoltávamos no momento em que falavam em público ou quando se comunicavam com os nossos amigos. Considerávamos os pais excessivamente velhos, pela estranheza que geravam nos outros. Ninguém de nossa turma conhecia suas gírias, e recebíamos o encargo de sempre explicar que porra eles estavam dizendo, se aquilo significava ofensa ou elogio, se estavam felizes ou irritados.  
Sem perceber, acabei herdando uma das expressões. Incorporei uma das antiguidades familiares. Veio comigo e continua comigo. Sobreviveu ao meu preconceito e minha ânsia de ser atual.
É a palavra pousar para dormir.
- Pousará fora?
- Onde vai pousar?
- Ninguém pousará em casa, estaremos viajando.
Acho que pousar é melhor do que dormir mesmo.
Tem mais sentido para mim.
[...]
Pousar é romântico. Pousar é renunciar o céu por um lugar definitivo. Pousar é aceitar que não podemos passar a vida ao vento. Pousar é descansar de longa viagem.
Pousar é tranquilidade, é mansidão, combina com ficar de conchinha, deitar de pés dados, cheirar o cangote.
Pousar é uma atitude que supera o descanso. É confiança. É se doar. É se decidir por um canto seguro e acolhedor. É se enraizar numa árvore.
Eu me imagino descendo do turbilhão dos acontecimentos, diminuindo o ritmo, distanciando-me da pressão do trabalho. E vou me acostumando com o silêncio, com a intimidade, com o travesseiro de penas.  
Quando amo, não durmo com alguém, eu pouso com alguém.
Paro de voar. Desisto da altura pelo chão. A casa é ninho.  
Quando amo, sou pássaro. Deixo de sofrer como homem.



Publicado na Revista Isto É Gente
Edição Bimestral
Janeiro 2015
Ano 15 Número 715
São Paulo (SP)


 

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Bem-Vindo a Holanda

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Por Emily Perl Knisley, 1987

Ter um bebê é como planejar uma fabulosa viagem de férias para a Itália ! Você compra montes de guias e faz planos maravilhosos! O Coliseu. O Davi de Michelângelo. As gôndolas em Veneza. Você pode até aprender algumas frases em italiano. É tudo muito excitante. Após meses de antecipação, finalmente chega o grande dia! Você arruma suas malas e embarca. Algumas horas depois você aterrissa. O comissário de bordo chega e diz:
- BEM VINDO A HOLANDA!
- Holanda!?! - Diz você.
- O que quer dizer com Holanda!?!? Eu escolhi a Itália! Eu devia ter chegado à Itália. Toda a minha vida eu sonhei em conhecer a Itália!
Mas houve uma mudança de plano voo. Eles aterrissaram na Holanda e é lá que você deve ficar.
A coisa mais importante é que eles não te levaram a um lugar horrível, desagradável, cheio de pestilência, fome e doença. É apenas um lugar diferente.
Logo, você deve sair e comprar novos guias. Deve aprender uma nova linguagem. E você irá encontrar todo um novo grupo de pessoas que nunca encontrou antes.
É apenas um lugar diferente. É mais baixo e menos ensolarado que a Itália. Mas após alguns minutos, você pode respirar fundo e olhar ao redor, começar a notar que a Holanda tem moinhos de vento, tulipas e até Rembrant's e Van Gogh's.
Mas, todos que você conhece estão ocupados indo e vindo da Itália, estão sempre comentando sobre o tempo maravilhoso que passaram lá. E por toda sua vida você dirá: - Sim, era onde eu deveria estar. Era tudo o que eu havia planejado!
E a dor que isso causa nunca, nunca irá embora. Porque a perda desse sonho é uma perda extremamente significativa. Porém, se você passar a sua vida toda remoendo o fato de não ter chegado à Itália, nunca estará livre para apreciar as coisas belas e muito especiais sobre a Holanda!

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Pra ler e ouvir: “você se apaixonou pelos meus erros”


Descobri aos 25 que discordo das teorias sobre os relacionamentos que li até os 24. Psicólogos, psicoterapeutas, psiquiatras e todos os psicos me já disseram que o segredo dos relacionamentos está nas concordâncias – gostar das mesmas músicas, dos mesmos livros, dos mesmos passeios. Hoje, mais do que saber, eu sinto que não. O que nos faz felizes, meu amor, é exatamente o que nos faz diferentes.
Demorou, demorou muito – quase demais – para que eu percebesse que o seu gosto por ficção científica pode conviver com as minhas manias de gostar mesmo é da realidade. Quase estraguei tudo antes de ver a beleza da nossa estante com Dan Abnet e Nelson Rodrigues, antes de olhar para a sua melancolia e perceber que ela cabia exatamente onde está toda a minha mania de ver o lado bom de tudo. Eu que amo quebra-cabeças nunca tinha pensado que duas peças exatamente iguais não se encaixam e não ficam próximas. As diferentes, sim.
Como diz essa música, meu amor, “você se apaixonou pelos erros”. E o maior deles talvez tenha sido apostar em relacionamentos que confundiam semelhança com monotonia. Enquanto neles eu apostava todas as minhas fichas no “eu também”, encontrei a minha felicidade exatamente no seu “eu não”.
Nunca foi fácil justificar as suas ausências em ocasiões sociais. Talvez porque a minha mania de agradar todo mundo não combina com a sua personalidade forte e com a sua crença de que é melhor dizer que não está a fim e pronto. O mundo que entenda. O mundo que compreenda que quando esse medo de viver bate, nós queremos mesmo ficar na cama admirando a mesma obra de arte, o mesmo gato que hoje é nosso, o mesmo mapa que a vida colocou no seu peito por prever que eu sempre gostei de caças ao tesouro.
“O que não pode evitar e não se pode escolher”, não é? As nossas discordâncias fazem, sim, com que sejamos diferentes. Não conheço seus amigos dos games, você não conhece meus parceiros de samba. Faço um milhão de coisas com um milhão de pessoas e você tem no gato a companhia mais constante. Eu admiro a sua solidão e você a minha multidão.
Descobri aos 25 que a convivência entre o seu mundo e o meu é muito mais importante do que a fusão em um só universo. Assim eu posso te visitar, você pode me ensinar e a gente sempre fica com saudades, porque o outro é algo que não encontramos dentro de nós.

O que eu queria te dizer e os Engenheiros do Hawaii disseram:



Fonte: Entenda Os Homens

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Depressão

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Quem nunca se sentiu triste alguma vez na vida? Na maior parte das vezes, é uma tristeza momentânea e que não demora muito a passar. Mas, em alguns casos, essa tristeza pode quase paralisar a vida da pessoa e durar muito tempo. Falaremos hoje sobre depressão no Minutos Psíquicos.



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Viés de confirmação:http://youtu.be/LJ9L7aVTmmE
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segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Sexo, amor e respeito



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Sempre ouço por aí que as atitudes de cavalheirismo estão em falta no mundo. Esse conceito de gentileza e de nobreza, de como abrir a porta do carro, de andar pelo lado de fora da calçada, de proteger uma mulher e ser um legítimo gentleman. Vivo escutando por aí que isso não existe mais.
Mas e a dama? Essa palavra me remete ou a um antigo jogo, ou a uma mulher dos anos 20, submissa, que deve estar sempre elegante, perfeita em sua aparência, que seja educada e esteja sempre pronta para o homem. Esse perfil não se vê mais dessa forma nos dias de hoje.
Essa diferença, essa cultura de que o homem fornece e a mulher recebe, vem desde os tempos das cavernas. Isso também vale sexualmente falando. Mas, peraí! Então o homem tem que fazer acontecer e a mulher apenas servir de sua beleza? Infelizmente esse conceito tão antigo segue até hoje, mas através de outra abordagem, com dois tipos distintos de homem e mulher.
Mulher vive dizendo que quer um homem que a faça rir, que esteja sempre com ela e que entenda todos seus momentos. Esse tipo de homem você encontra no circo: ele se chama palhaço ou mágico! Já os homens querem aquela mulher sem passado, gostosa, independente, que goste de futebol. Essa também você encontra nas histórias em quadrinhos – ela se chama Mulher Maravilha!
Nenhum dos sexos é perfeito. É exatamente por isso que um completa o outro – com suas relações, suas trocas. Mas há certas coisas que o homem nunca vai entender na mulher, assim como a mulher não vai entender no homem. Um chute nas partes baixas ou uma crise de TPM são auto-explicativos nesse caso.
Portanto, nunca seremos perfeitos um para o outro, mas podemos melhorar. Tentando ser mais claro, vou distinguir. Como segue a tradição, primeiro as damas: homem fica louco quando vê uma mulher gostosa num micro vestido, com aquele decote enorme, naquele corpo escultural. Ouviram bem? Fica louco, mas não apaixonado.
Fica louco, pois vê apenas o visual, aquela fachada bem exposta. Isso é temporal, é de momento. Nesse instante clássico, quem age é a testosterona. E isso não é desculpa, é algo inato ao homem, faz parte do seu instinto. Portanto, não se preocupe se a gente olha para outra, é apenas momento e não falta de respeito, como muitas pensam. Sendo mais direto, todo homem quer pegar uma gostosa num micro vestido, mas quer namorar uma mulher de família, vulgo mulherão, como a que será descrita abaixo.
Já a mulher exige cavalheirismo, mas esquece que ela também é uma dama e deve fazer o mesmo, pois só o corpo não basta. Como eu disse, existem dois tipos de mulheres: as que não merecem respeito, e o mulherão.
Existe a que não merece respeito, aquela que acha que ser bonita e gostosa basta; que não consegue segurar a onda de ficar sozinha e precisa sempre de gente pra tampar o vazio interno; que se intitula livre, mas vive aprisionada pelos artifícios físicos e exagera em todos eles, que acha que o salão de beleza é faculdade. Sem hipocrisia, beleza é fundamental, mas beleza sem conteúdo é pacote vazio, dura pouco.
Então existe a dama, o mulherão – que pode, sim, colocar um silicone, mas que não precisa se exibir com decotes extremos porque sabe do seu potencial. O mulherão entende que charme e naturalidade valem mais do que qualquer artifício; mulherão tem atitude, sabe o que quer, e  sabe reconhecer seus pontos fracos; mulherão tem cultura, sabe discutir um assunto com propriedade; reconhece que os pequenos gestos valem mais do que presentes; não se sente ofendida em pagar a conta de vez em quando e entende que isso é um ato de gentileza como qualquer outro; mulherão não tem frescuras durante o sexo, topa viajar pra qualquer lugar, valoriza um bom boteco, curte estar junto dos seus amigos. Homens gostam dessa mulher exclusiva, que se dá valor. Poderia listar vários outros itens, mas acho que esses já dão a dica.
Mas, e o homem? ´Ah, homem é tudo igual, só pensa em sexo.´ Errado! No sexo o homem não pensa por inteiro, como eu já disse. A testosterona é a culpada e só quem é homem sabe do estou falando. Esse maldito (ou bendito) hormônio já nos deixou em situações inimagináveis, mesmo assim os homens conseguem pensar com a cabeça de cima – eu garanto. Tem muito cara legal por aí, basta saber selecionar. Assim como no caso das mulheres, existem dois tipos de homens: O Mané e o Cara!
O Mané acha que muito dinheiro vai compensar a falta de cérebro; é mal educado e ignora pessoas como garçons, faxineiros e porteiros por se achar, de alguma forma, superior a eles; faz de tudo pra levar uma mulher pra cama e depois a chama de ´vadia´, ainda não aprendeu a diferença entre quantidade e qualidade.
E também tem o Cara! Aquele que sabe que sua atitude vale mais do que sua beleza, que reconhece seus defeitos, mas sabe usar outros meios para compensá-los; que sabe usar bem suas palavras, que trata bem as pessoas ao seu redor, que é independente emocionalmente, que gosta de crianças, que ama sua família.
No final das contas, todos querem um cavalheiro ou uma dama ao seu lado, uma parceria entre as qualidades de um e as qualidades do outro. E, se tudo isso vier acompanhado de um corpo fenomenal, melhor ainda. Portanto, realçar outras qualidades é um ato de prazer a longo prazo. Pergunte isso aos casais que estão casados há anos. Qualidades como respeito e cumplicidade (e as vezes paciência) aumentam muito a capacidade e o sucesso de uma relação. Se identificar com uma pessoa não é algo simples. Cheiro, toque, hálito, pele, pensamento, sentimento… o amor é uma fórmula inexata! São muitas variantes que, somadas a uma incógnita X, resultam num sentimento instável, mas potente e procurado por todos.
Posso aqui ser prático, posso falar de amor e sexo, mas hoje o texto é baseado apenas na imagem, no fugaz, no alívio rápido. Sexo é visceral, respeito não! Sexo se faz até com a mão e a imaginação. Quem quer respeito e um grande amor, tem que gerar respeito e amor-próprio. Antes ser idiota para as pessoas, que infeliz para si mesmo.

Gustavo Sana

domingo, 25 de janeiro de 2015

A tristeza de um “quase”

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Foi quase gol. O que não o impediu de chorar pelo time, rebaixado, desmoralizado e humilhado mais uma vez.
Debruçara-se à janela quase a tempo. Mas perdeu a mais intensa chuva de estrelas cadentes dos últimos vinte anos.
Tirara quase sete. E ainda assim, teve que trocar o videogame por boas horas de estudo para a prova de recuperação.
Chegou quase às dezesseis. O que impossibilitou que tomasse o ônibus das quinze e cinquenta e quatro.
Juntou quase um bilhão de reais. O que não foi suficiente para que fizesse parte da lista dos mais ricos do mundo pela Forbes.
Ganhara quase sete quilos. Mas ainda assim, não era gordo o suficiente para entrar na fila da cirurgia bariátrica pelo SUS.
Quase fora diagnosticado com dengue. O que não foi suficiente para que pegasse duas semaninhas de atestado médico.
Quase fora promovido. Porém, como continuara sendo estagiário, não teve condições de pagar a viagem dos sonhos para o pai em estado terminal.
Há algo mais nocivo do que um quase? Do que uma quase conquista? Do que uma quase certeza? Do que um quase amor? Viver na iminência é ter um pé na beira do abismo e não poder se jogar ao mar. É ver o trio elétrico e não poder correr atrás por causa da perna engessada. É esticar os braços para fora da janela e perceber que o trem é tão veloz que sequer os dedos se tocaram. Porque sempre que a gente quase, a gente não foi. Sempre que a gente quase, a gente não é. Sempre que a gente quase, a gente não será.
(...)


Sobre Bruna Grotti

Alguém que não sabe mais do que você. Que não fez mais do que você. Que não sentiu mais do que você. Mas que, talvez, tenha um pouquinho mais de tato com as palavras pra transformar banalidades em crises existenciais e motivos de choro.

Fonte: Entenda Os Homens

sábado, 24 de janeiro de 2015

GUERRA FRIA



Fabrício Carpinejar


O principal motivo de separação de tantos casais promissores não é a falta de química ou os interesses diferentes ou o medo de se entregar. É algo que surge depois da paixão. Já que a opinião do apaixonado não vale, ele somente concorda, avisa que está ótimo e não se preocupa com detalhes.
Parece bobo, idiota, insignificante o que vou dizer, mas realmente é o padrasto do início das brigas.
Estou falando do controle remoto do ar-condicionado, que assumiu a vilania competitiva antes exclusiva do controle remoto da tevê.
Acertar a temperatura do quarto tornou-se uma das maiores querelas amorosas. O homem sempre quer mais frio, a mulher sempre quer mais quente. Um precisa ceder, ninguém cede. A mulher contrariada culpará sua companhia pela enxaqueca e dor de garganta. O homem contrariado culpará sua companhia pelo suor, pesadelos e insônia.
Ele pretende dormir com edredom, como se fosse inverno. Ela busca descansar com a janela aberta, fino lençol cobrindo os pés e esperança de brisa.
Não há tribunal de pequenas causas que abarque a grandeza do conflito. O homem anseia se trancar num frigorífico, a mulher tem a predileção pela espontaneidade de uma estufa. Homem é esquimó, mulher é nudista.
Começa uma trapaça sem limites entre calorentos e friorentos.O homem deita com a temperatura de 18 graus e acorda com 26. A mulher deita com 26 graus e acorda com 18. Nenhum dois banca o desvio de rota durante a madrugada e seguem se boicotando e mentindo e fingindo que a refrigeração tem vida própria.
Homem e mulher são estações meteorológicas de continentes opostos. A guerra se anunciava com o ventilador. A mulher não gostava do aparelho ligado a noite inteira e virado em cima dela. O homem fazia questão do ponto fixo e das hélices em força máxima. Nesta queda de braço muda e ancestral, um se aproveita do vacilo do outro para tirar vantagem e o par costuma amanhecer descontente e cansado.
A origem do problema é profissional. Ambos estão se vingando do ambiente padrão do emprego, onde não mandam coisa alguma e terminam submissos e gripados.
Não se leva mais trabalho para casa. O que os casais andam trazendo agora para o lar são recalques.


 
 
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sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

O amor é nojento

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Já limpei bunda de criança que nem da minha família era e que eu só vi uma vez na vida. Já matei barata naquele embate direto e sem direito a inseticida, em que ela estava armada com aquelas terríveis asas e eu, com meu modesto par de Havaianas. Já comi churrasco grego no centro de São Paulo, daqueles que vêm acompanhados por refresco sabor água-suja e por aquele vinagretezinho esperto tirado da gaveta onde o vendedor guarda também o dinheiro. Já engoli litros de água do mar da Praia Grande e vomitei até a alma como consequência. Mas se tem uma coisa que o nojo nunca havia me permitido vencer eram os – para a maioria da humanidade inofensivos – fios de cabelo. Qualquer um que não estivesse preso à cabeça de alguém me causava repulsa. Fosse no chão do quarto, na pia do banheiro, num prato de espaguete ou – urgh! – naquelas escovas de cabelo envoltas em intermináveis tufos embaraçados. Rapunzel muito provavelmente não me convenceria a salvá-la da torre se me jogasse suas tranças. Um fio de cabelo no meu paletó, ao contrário do que causou em Chitãozinho e Xororó, não me provocaria nada além de nojinho.
Até o momento em que eu conheci uma coisinha brega, porém deliciosa, descrita por muitos poetas e cantada por muitos mestres, que é composta por quatro letras e que começa com a e termina com –mor. O amor. Ah, o amor. Sagaz como só, ele me veio na forma de um homem lindo e… cabeludo. Não no comprimento, mas sim no volume. Pense numa pessoa que tem muito cabelo. Pense numa pessoa que tem mais cabelo ainda. Some a peruca das duas. Agora multiplique por dez. Esse é mais ou menos – arredondando pra baixo – o volume capilar dele. E apesar do amor deixar a gente anestesiado e encantado, não tardei muito a calcular que, se ele tinha muito cabelo na cabeça, muito cabelo devia cair também. Dito e feito. Deu a primeira noite em que ele dormiu na minha casa, e minha cama ficou forrada de cabelo. Forradinha da silva. Era tanto cabelo que dava pra costurar uma peruca. E era um cabelo tão preto e tão grosso que dava pra confeccionar uma vassoura piaçava. Se fosse qualquer um, no dia seguinte eu estaria arrancando os lençóis e chacoalhando freneticamente para todos aqueles fiozinhos detestáveis desgrudarem, pra eu então varrer, jogar no lixo e nunca mais pensar nisso. Mas era ele. Eu, então, me peguei olhando para aquele travesseiro cabeludo e me lembrando com carinho do dono de todo aquele DNA desperdiçado na minha cama.
É. O amor é cheio dessas peripécias. De nos fazer morder a língua. De fazer com que a saliva que a gente cospe pra cima caia em cheio na nossa testa. E de, ainda por cima, fazer a gente levantar as mãos aos céus e agradecer por ter essa saliva tão viçosa revigorando a pele e secando a acne. Como se converter repulsa por fios de cabelo em paixão não fosse milagre suficiente, o amor operou de novo. Desde pequena, sempre fui chatinha com pano de prato. Lá em casa, tinha um paninho pra secar a louça, um mais felpudo pra enxugar as mãos, e outro bem ralinho e fedidinho pra limpar a pia. Essas eram as regras da minha mãe, eu as defendia com unhas e dentes, e meu pai era a maior vítima da minha fiscalização. Isso porque ele adorava secar a boca no pano de prato. Todo mundo na sala, assistindo a uma novelinha, quando eu escapava pra buscar um copo d’água e – TCHARAM! – pegava meu pai com a boca na botija – ou melhor, no pano de prato. Aí era bronca, advertência por escrito e multa. Eis que, passados alguns anos – uma dezena deles, arrisco dizer – vem o amor. Sorrateiro e irônico, na forma de um homem lindo, cabeludo e… que também seca a boca no pano de prato.
E pra mim, vê-lo secando aquela boca linda no pano de prato, hoje, é acalanto. Porque amor é isso. É aprender novos conceitos e rever os antigos. É se reinventar sem medo de admitir que, sim, você esteve errado a vida inteira. É se apegar ao que realmente importa e deixar qualquer nojinho de lado. Pior do que tudo isso, é achar tudo isso romântico. Embora lindo, o amor é brega. E porquinho. Quantas vezes já me peguei cheirando a boca dele logo que ele acorda, pra sentir aquele odor doce e maravilhoso que só ele sabe exalar? Quantas vezes já me peguei, nesses dias de calor insuportável e de corpos em derretimento, enfiando o nariz na sovaqueira dele pra comprovar empiricamente o que jamais precisaria ser comprovado a curta distância? E por que a gente se submete a tudo isso? – eu me pego pensando. Porque a gente ama. E pra gente, tudo isso é incrível.
Sim, eu amo um homem lindo, cabeludo, que limpa a boca no pano de prato e que…
É são-paulino fanático, enquanto a minha família toda é palmeirense. Aperta o tubo de pasta de dente bem no meio, enquanto eu cultivo desde a infância a arte milenar de apertar caprichosamente pela bundinha. Tem ojeriza a redes sociais, enquanto eu sou rainha do Facebook. Após as refeições, religiosamente prepara o que ele chama de néctar dos deuses e que eu, se tomei cinco vezes na vida, foi muito: café. Solta os lençóis da cama e se enrosca neles, enquanto eu gosto de dormir metodicamente envelopada, com os lençóis bem presos embaixo do colchão.
E querem saber? Já tô até aprendendo a dormir com os pezinhos descobertos. Porque, afinal, amor é sobre mais do que ceder. É sobre ser feliz em ceder. Sem olhar pra trás.




Sobre Bruna Grotti

Alguém que não sabe mais do que você. Que não fez mais do que você. Que não sentiu mais do que você. Mas que, talvez, tenha um pouquinho mais de tato com as palavras pra transformar banalidades em crises existenciais e motivos de choro.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

E o bullying? Também não seria “liberdade de expressão”?



Por Nara Rúbia Ribeiro


Vejo que hoje muitas pessoas demonstram um entendimento equivocado acerca da livre manifestação de pensamento. Por exemplo. Se o coleguinha do seu filho o chama, de modo recorrente, de “gordo”, “crente burro”, “idiota católico”, “branquelo azedo”, isso é “bullying”. Mas se um jornalista faz isso, o nome é outro: é liberdade de expressão.
Precisamos, então, ponderar acerca desse direito tão importante às bases democráticas, mas devassador quando tem exorbitados seus limites.
Ocorre que a liberdade de expressão não é absoluta. Essa liberdade, assim como todos os outros direitos, é relativa. Precisa amoldar-se, no contexto social, a várias outras garantias que a lei dá ao indivíduo.
Aquilo que você pensa, é algo seu. Inerente a você e isso é indiferente à sociedade. A partir do momento em que você manifesta o seu pensamento, ele terá repercussão em dado local, num determinado período de tempo e, se ferir direito de terceiros, teremos que colocar na balança o que vale mais: o seu direito de dizer ou o direito que foi ferido pela sua fala. A sociedade estabelece leis para que possamos aferir o que é mais importante.
10917750_855050671221890_184955779_nPor exemplo, talvez você não goste de negros. Conheço muitos que não gostam. É um direito seu. Cada um cultiva internamente aquilo que bem lhe aprouver: flores ou abrolhos. Pavimenta estradas de esperança ou  margeia lamaçais de podridão. Ser preconceituoso é um direito íntimo seu. Agora, se você disser que não gosta de negros, aí a coisa muda de figura. Afinal, você externou uma opinião sua que qualifica homens e mulheres não por sua essência, mas por  sua cor. E isso é racismo e trata-se de um crime passível de severa punição.
Você pode achar o seu vizinho esnobe e feio. E se isso ficar com você, que problema há? Mas se você o disser, ele poderá se sentir ofendido, e isso poderá caracterizar um crime de injúria.
Talvez você não goste do credo de alguém. Direito seu. Mas se você ridicularizar esse credo, você pode ferir intimamente o outro. E ele possui, assegurado constitucionalmente, o direito ao livre exercício de seu credo, de modo a garantir que sua crença não seja um motivo de escárnio. Se você fizer isso, pode infringir o art. 208 do Código Penal, que diz que é crime “Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa”.
Você pode achar que, por exemplo, todo político é ladrão. Pode achar (veja que pensamento vulgar, mas tem gente que até pensa) que todo padre é pedófilo. Mas se você o disser, assim mesmo: genericamente, incorre em crime tanto de injúria quanto de calúnia. Como são ações penais de natureza privada, (aquelas situações em que é a própria pessoa ofendida e não o ministério público leva o caso a julgamento) se qualquer político ou padre se ofender (seguindo com o exemplo acima mencionado), você responde por esses crimes. Afinal, é crime mesmo.
E não interessa se quem achincalha, ofende, agride ou calunia é você, um menininho que estuda com o seu filho ou se é um jornalista de uma grande revista internacional. Ninguém tem o direito de usar o verbo para humilhar e ofender gratuitamente, movido por preconceito, pela necessidade de hierarquizar o humano, de colocar o outro em um patamar inferior ao seu (ou aos seus). Afinal, assim como os indivíduos coexistem e devem conviver harmonicamente, assim também a integralidade dos nossos direitos, e não apenas o direito à liberdade de expressão, deve ser respeitado.

Nara Rúbia Ribeiro
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Escritora, advogada e professora universitária.
Administradora da página oficial do escritor moçambicano Mia Couto.
No Facebook: Escritos de Nara Rúbia Ribeiro
Mia Couto oficial

Fonte: Conti Outra

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

O amor é mais amor na simplicidade

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Lembra quando nos vimos pela primeira vez? Foi num bar simplesinho no centro. Você já tinha me visto antes, mas não conta. Foi naquele dia que eu pus os olhos pela primeira vez em você – se bem que eu já estava apaixonada pela simplicidade da sua alma. E até hoje estou. Das tantas coisas que você me ensinou, a mais preciosa é essa simplicidade pra viver a vida. Aquela coisa que eu vou levar comigo onde quer que eu vá. Como quando você disse que não gostava de ir a casamentos porque as pessoas se engravatavam (como se adivinhasse que eu brochava com homens engravatados). Ou quando tiramos o sofá da sala porque preferimos um tapete cheio de almofadas e um monte de espaço livre pro vento correr. Ou quando faltou às festas pomposas de pessoas próximas só porque eram pomposas e eu senti um alívio imenso porque não precisei ir com você. Quando terminou a faculdade e foi fazer algo que amava, mesmo que todo mundo te dissesse que aqueles cinco anos na sala de aula tinham que fazer você ficar rico. Você está rico de felicidade e de uma vida que te apetece – e, se quer saber, aquelas pessoas é que não sabem nada a respeito de riqueza.
E quando nos casamos? Sem vestido rendado, sem smoking, sem papéis engavetados, sem buquê, sem álbuns de fotografia.
(...)
E carregamos as poucas coisas de que precisávamos numa carrocinha num reboque com a ajuda dos nossos muitos e bons amigos. Nossa cama, nosso violão, nossos presentes, nossos livros. Estávamos prontos. Não teve lua-de-mel em Veneza , não teve dia de noiva no salão de beleza, não teve cara de espanto depois do pedido. Não teve festa rica pra pagarmos em dez vezes pra recebermos convidados cuja maioria nem se importava conosco. Só teve felicidade, e tem como dizer “só”?
Confesso que demorou, mas eu aprendi com você que planejar dias perfeitos é a maior perda de tempo. A gente acorda, sorri, e a felicidade chega. Não precisa de jantar, de roupa nova, de discurso pronto. Só nós é que precisamos estar prontos.
Logo eu, que nunca me contentei com nada, aprendi com você que a vida é tão pouco. E que precisamos de tão pouco se tivermos o que interessa. E agora troco os jantares sofisticados no dia dos namorados pela pizza que pedimos e comemos no nosso tapete. Troco as sonhadas viagens programadas por países europeus por aquela ida para a Argentina de carro que a gente planejou. Troco os ursinhos de pelúcia e os buquês de rosas que (ainda bem!) você parou de me presentear quando entendeu que eu não precisava e não queria, pelas músicas que você aprende a tocar pra mim e pelos presentes úteis que traz de surpresa.
Ainda bem que eu não precisei te dizer que flores mortas não alegravam a minha alma, porque com você tudo é vida. É ar puro. É música lenta. É paz de espírito. E que a gente podia acordar, e você podia dizer pra eu usar o meu vestido branco porque ele era lindo, e me oferecer uma dose de uísque e me chamar pro boteco para o qual você jamais chamaria as suas ex-namoradas pomposas. E que eu poderia ir sem usar maquiagem porque eu prefiro assim. Ainda bem que você entendeu, e me ensinou, e compartilhou comigo: o amor é simples como a vida.


Sobre Nathalí Macedo

Atriz por vocação, escritora por amor e feminista em tempo integral. Adora rir de si mesma e costuma se dar ao luxo de passar os domingos de pijama vendo desenho animado. Apesar de tirar fotos olhando por cima do ombro, garante que é a simplicidade em pessoa. No mais, nunca foi santa.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

A vida não é filme

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A vida não é filme, você não entendeu. O final feliz não é garantido, pra começo de conversa. Você não vai conhecer a mulher da sua vida entrando de cabeça baixa em um elevador que vai enguiçar, aí você vai ver uma moça linda que, por acaso, vai estar lendo o seu livro e dizer: “pelo menos eu tenho esse livro genial pra me ajudar a passar o tempo”. Isso não vai acontecer. Seu melhor amigo não vai te chamar para um blind date com a “amiga chata” da namorada dele, e quando chegar lá você descobrir que ela é a mulher da sua vida. Desiste, isso não vai acontecer.
A vida não é filme. Você não vai conseguir fazer as pazes com uma rosa vermelha minutos depois de ter vomitado impropérios e verdades inconvenientes na cara da outra pessoa. As brigas com a pessoa que você ama não vão ser engraçadas, nem “fofinhas”. As brigas vão ser destrutivas, vocês vão se ofender e, em vez (uma) de reconciliação (amorosa)*, vocês vão dormir um em cada canto da cama, fazendo o máximo para evitar o outro. Você mandar mil mensagens e ligar no dia seguinte às oito da manhã não vai fazer com que ela mostre isso pras amigas e comente o quanto você é fofo e perfeito.
Se você, idiotamente, terminar com a mulher da sua vida por algum motivo bobo qualquer, ela não vai te aceitar de braços abertos, na chuva, chorando de felicidade, seis meses depois. Seis meses depois ela vai estar com outro, ou vai estar sozinha, te odiando. Ela não vai se orgulhar de contar para os amigos que vocês voltaram, porque os amigos dela já te odeiam. Não ache que quando o filme estiver acabando ela vai te aceitar de volta depois de você correr dezoito quarteirões e fazer um discurso de ano novo. Isso não vai acontecer.
A vida não é filme e você não entendeu nada mesmo. No meio do seu clipe romântico com trilha sonora por cima, vocês vão brigar por ciúmes, você vai ter uma má fase no trabalho e – idiota que você é – descontar nela. Depois de vocês se separarem e você se arrepender, não adianta chorar no banheiro, quebrar a porta com um soco nem ficar conversando com o seu gato sobre como foi burro em ter terminado com ela. Ela não vai ver nem ouvir nada disso, ninguém vai ver nem ouvir nada disso. Seu arrependimento não vai ser recompensado porque o roteirista sabe que as pessoas gostam de histórias de redenção. Você vai se redimir sozinho, chorando na sala da sua casa. A vida não é filme, você não entendeu. E eu só entendi agora.


Sobre Léo Luz

Leonardo Luz é escritor e roteirista, e não sabe fazer mais nada da vida, a não ser jogar poker e fazer pipoca de microondas.

*  frase adaptada


Fonte: Entenda Os Homens

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O problema não é você, são seus erros de português



Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A produção deste texto não é uma vivência específica, mas a soma de experiências próprias, bem como a de pessoas próximas levemente exigentes e com esperanças de encontrar um eu que conjugue o verbo amar.


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Toda relação é idealizada e, antes que se concretize, algumas expectativas, inevitavelmente, são criadas. Eu, bem como algumas amigas, sempre fui muito exigente. Imaginava e listava uma série de adjetivos que a pessoa perfeita deveria ter. Inteligência, bom humor, beleza, integridade, ambição, romantismo, sensibilidade, coragem, determinação, bom gosto e algumas semelhanças políticas e ideológicas.
Acontece que, conforme o tempo passa e você envelhece, percebe que estas exigências são muito altas.
(Até porque, nem você mesma as atinge)
Logo, os critérios para um suposto envolvimento vão ficando menores e chega um momento que você pensa: Tem todos os dentes na boca? Toma banho? Cursou o ensino fundamental?
Se respondeu SIM para, pelo menos, duas destas questões, tem chances!
(ATENÇÃO: não se empolguem! Este é o último estágio e envolve desespero exacerbado e um medo irracional de ficar sozinha para sempre)
Obviamente, não estou neste estágio e ainda tenho esperança de atingir parcialmente o meu ideal. Portanto, minha lista permanece com algumas exigências básicas. Partindo deste princípio, eu posso tolerar bermuda com meias, um gosto musical duvidoso, manias estranhas e até a escolha de um candidato que detesto. Eu compreendo um leve fanatismo por futebol, algum exagero alcoólico e uma péssima memória para datas importantes.
Agora, o que não dá para aceitar, de jeito nenhum, é uma pessoa que não sabe, minimamente, escrever. E não estou falando de erros bobos cometidos por todos nós e totalmente aceitáveis.
(Aposto que pessoas mais exigentes que eu devem estar, neste momento, buscando falhas neste texto e, já adianto, vão encontrar muitas. Eu encontro uma dezena cada vez que releio algo que escrevi)
Enfim, estou falando de N antes de P e B, de nome próprio com letra minúscula e de verbo que não acompanha o sujeito. Eu até queria relevar seu estado ANCIOSO, o MENAS, o ESTEJE e o SEJE que você soltou. Eu poderia tolerar um MAIS ao invés de MAS e até algumas abreviações excessivas desta linguagem cibernética. O problema é que o seu AGENTE (e não estou falando do agente da lei) não me deu chances. Você se perdia nos porquês, no onde e no aonde. Colocava um Ç no lugar de um (ou dois) S e um S no lugar de um Z!
Quantos Rs comidos? Quantos Ls substituindo Us de forma indevida?
Eu queria muito fechar os olhos (ou os ouvidos), mas te ouvir dizendo que iria SE arrumar para sair era DE MAIS para mim. Aliás, como o seu mim conjugava verbos... Percebi que ter concluído o ensino básico, passado no vestibular e entrado para um curso superior não significava absolutamente nada, ortograficamente e coerentemente falando.
“Não te amo mais”, “Estou te traindo com sua melhor amiga”, “Sou um psicopata”, “você está gorda”!
Não, nada disso foi dito!
As palavras que me penetraram o ouvido, olhos e coração foram:
ENQUANDO, DENOVO, DEREPENTE, EM FIM, NÓIS, FELIS e CONCERTEZA!
Bem, eu queria fugir das frases clichês para explicar o motivo de não ter dado certo, mas preciso dizer...
O problema não é você, são seus erros de português.
Obs.: Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A produção deste texto não é uma vivência específica, mas a soma de experiências próprias, bem como a de pessoas próximas levemente exigentes e um tanto esperançosas.



Luana Peres

Ser livre, leve e aberta as possibilidades. Já foi finita. Hoje, através dos seus escritos e delírios, preserva a pretensão de ser infinita e poder transformar o mundo .
Saiba como escrever na obvious.

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domingo, 18 de janeiro de 2015

Uma coisa bonita

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Eu quis te escrever uma coisa bonita porque é tão bonito o que você faz comigo, que eu tenho vontade de te escrever todas palavras bonitas do mundo. Arco-íris, samba, mar, abraço, cafuné, café, apego. Pra te dizer coisa bonita e leve e simples, eu coloquei um João Gilberto baixinho, só com um violão cantando uma bossa. Eu queria que você lesse isso assim, com essa sensação de pôr-do-sol, de tato de pescoço com o toque de lábios, de dedo enroscado em cabelo e colo de frente pro mar. Eu te queria uma sensação bonita.
É tanto silêncio e é tanto barulho, que eu queria te dizer uma coisa bonita que calasse a tolice e te fizesse acreditar que sempre vale a pena. Queria (sem rima e sem verso, porque rima e verso são poesia e poesia é você) te dizer com palavras bonitas que não é mentira, não é exagero, não é nada. Simplesmente é.
Eu queria te dizer uma coisa tão bonita, que desse pra sentir os meus braços nas tuas costas e a escola de samba que eu tenho no peito contra o teu. Que trouxesse a sensação de conforto que só um abraço par traz. Eu queria te dizer uma coisa mais bonita que o silêncio do desconhecido próximo, mesmo sabendo que coisa mais bonita não pode haver. Queria te dizer uma coisa tão bonita quanto o suspiro que enche o pulmão de ar e transforma quilômetros em arrepios.
Queria te dizer que meu peito que era marina virou barco e que minha direção é o céu. Eu quis te mandar – por pensamento, por carta, por bytes, por notas musicais, por toque, por cheiro, por carinho – um pedaço do meu nublado. Afinal de contas, a solidão das tuas nuvens gris e do meu algodão doce, que eu só quis te dizer uma coisa bonita pra que você percebesse que aqui dentro não chove. Faz Bahia.


Marina Melz

Sobre Marina Melz

É jornalista e trabalha com assessoria de imprensa. É meio Bridget Jones e meio Woody Allen. Não tem preconceitos com músicas, filmes e qualquer coisa que seja. Acha que toda história (boa ou não) merece ser contada.

 Fonte: Entenda os Homens

sábado, 17 de janeiro de 2015

Por que amar é tão difícil?



Afinal, por que um verbo que traduz um sentimento tão bom, é tão complicado?


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Durante uma data em que as pessoas costumam festejar, explodir felicidades e compartilhar alegria, me encontrei tão antagônica a tudo isso, que comecei a refletir sobre o sentimento universal que move esse tipo de celebração: o amor.
Parece que quando gostamos de alguém e esse sentimento não é correspondido, nosso mundo desaba. No entanto, acabei me dando conta de algo mais difícil ainda do que isso: o amor correspondido. Por mais que seja um sentimento bom, quando verdadeiro, vem permeado de muitas dificuldades também. São duas pessoas diferentes, que viveram suas vidas até então da forma que consideravam mais conveniente para si mesmas e que, de repente, se deparam com a missão de não agradarem apenas a si próprias, mas a um outro também.
Quem ama e não é correspondido sente uma dor irreperável, eu concordo. No entanto, quem ama e é correspondido também sofre, pois construir uma história com alguém todos os dias exige muito comprometimento e compreensão. E por mais que esse sofrimento seja de certa forma mais ameno, suas doses homeopáticas podem ser muito torturantes.
Hoje considero amar mais difícil do que desamar, pois implica em aceitar, compreender, duvidar, questionar, superar e, muitas vezes, saber esperar. Relacionar-se com alguém ainda me parece um dos grandes mistérios da vida. Nunca sabemos se vai dar certo, mas não queremos perder as esperanças. Nunca brigamos achando que não haverá um amanhã, mas ficamos cansados de tantos desentendimentos. Nunca damos um beijo pensando que será o último, mas sempre guardamos um pouquinho de insegurança.
Afinal, amar é tão difícil porque te retira da sua zona de conforto. Não há mais espaço apenas para o "eu", que agora está acoplado em um grande " nós", te obrigando a lidar com os medos, angústias, receios, alegrias e sonhos de outra pessoa também. E, de certa forma, por mais que seja uma delícia, em alguns momentos pode ser assustador pensar que ao mesmo tempo em que você é um pilar essencial para o outro, também necessita de um apoio que é sim incontrolável, pois ninguém é capaz de segurar um amor.
Como já diziam, o amor é eterno enquanto dura. Hoje ele pode estar aqui e isso é maravilhoso. O amanhã é um enigma que vale a pena ser desvendado se houver coragem o suficiente para deixar seu coração na mão do outro, mesmo sabendo que ele pode ser partido a qualquer momento.


Bruna Cosenza

Em constante reconstrução e apaixonada por livros, busca se afastar de tudo o que é efêmero e descartável, pois tem uma queda por permanências e pessoas inteiras..
Saiba como escrever na obvious.

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sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Prisão verdade


A Verdade não é um valor inquestionável, mas sim uma ferramenta: útil em algumas ocasiões, inútil em outras

As verdades que carrego dentro de mim foram ensinadas por pessoas que erravam e mentiam. Quando verbalizo uma dessas verdades, estou canalizando suas opiniões e seus preconceitos.

Por isso, hoje, em vez de tentar aprender novas verdades, busco me livrar das antigas.
Quando encontro uma Verdade em meu cérebro que não sei de onde veio, eu pergunto: “tenho certeza disso?”

Não duvidar, não acreditar

Quando ouvimos um causo, temos a opção de acreditar ou duvidar, mas não há nenhuma palavra para a posição intermediária.
Diálogo que acontece comigo:
"Então, acreditou nessa história cabeluda que o Felipe acabou de contar?"
"Não", respondo.
E minha interlocutora:
"Arrá, eu também duvido, é óbvio que isso nunca aconteceu, esse cara é um mentiroso de marca maior!"
"Espera, eu não disse que duvidava. Eu disse que não tinha acreditado."
"Ué, e não é a mesma coisa?"
"Não. Eu não acreditei, mas também não duvidei. Nem engoli nem questionei. Nem aceitei a história como tendo realmente acontecido, nem rejeitei como nunca tendo acontecido."
Algumas vezes, minhas interlocutoras ficam confusas. Outras, me desafiam:
"Você o quê, então?!"
"Eu nada. Desde quando tenho a obrigação de me posicionar criticamente quanto à veracidade de tudo o que escuto?"

Nem no lixo, nem no pedestal

Quando digo que a Verdade é uma prisão, não estou dizendo que ela é inútil, nociva ou que deve ser jogada fora.
Defender que a Monogamia é uma prisão, por exemplo, não é uma crítica o casal que escolheu viver seu relacionamento de acordo com o pacto monogâmico, mas sim ao discurso hegemônico da nossa sociedade, que vende esse pacto como sendo a única maneira de organizarmos nossos relacionamentos e nunca abre espaço para as possibilidades alternativas.
A Verdade é uma prisão porque ela é igualmente vendida como um valor inquestionável, intrinsecamente positivo, que devemos sempre buscar, respeitar, valorizar.

* * *
Quando a vendedora diz que aquele carro só foi usado por uma velhinha para ir ao parque aos domingos; quando a candidato à vaga de emprego diz que é formada em Engenharia, quando a policial militar garante que a pessoa favelada que matou era uma bandida, é importante determinarmos a Verdade dos fatos.
Tão importante, aliás, que nossa sociedade criou uma série de mecanismos institucionais pensando exatamente nesses casos: odômetros, diplomas, julgamentos. Todos, cada um do seu jeito, instrumentos para medir a verdade dos fatos. Todos, cada um do seu jeito, passíveis de serem manipulados, falsificados, adulterados.
Então, não, a Verdade não é para ser posta no lixo, mas também não é para ser colocada em um pedestal.
Um martelo não é "bom" nem "ruim". Não faria sentido falar de um martelo nesses termos.
Se quero colocar um prego na parede, um martelo é útil. Se quero trocar uma lâmpada, um martelo é inútil.
A Verdade não é um valor, ela é uma ferramenta.
Algumas vezes, é útil. Em outras, só atrapalha.

A empatia da ficção

O livro Um Milhão de Pedacinhos foi um dos maiores fenômenos editorais da última década. A história da degradação e posterior redenção de um viciado em drogas inspirou milhões de pessoas por todo o mundo.
Algum tempo depois do lançamento, entretanto, o autor foi desmascarado como um grande mentiroso. Aparentemente, quase nada na história era verdade. Tudo foi distorcido ou exagerado. Sua agente literária o abandonou, sua editora cancelou seu contrato, sua maior fã, uma apresentadora de televisão, o renegou no ar, ao vivo. As mesmas milhões de pessoas por todo o mundo se sentiram traídas.
Eu não li Um Milhão de Pedacinhos. Não sei se é bom ou não. Mas, para as pessoas que leram e gostaram, para as pessoas que se sentiram tocadas pela mensagem, para as pessoas que aprenderam alguma coisa com o livro, que diferença faz tudo ter sido inventado ou não?
Minha irmã, por exemplo, não consegue ler ficção: não lhe desperta nenhuma empatia. Diz ela:
"Por que eu iria me interessar em saber como nunca se desenrolou uma situação que nunca aconteceu entre pessoas que nunca existiram?"
Mas será que a mensagem de Dom Quixote ou de Policarpo Quaresma deixa de ser verdadeira somente porque os personagens nunca existiram?
De certo modo, Antígona e Capitu talvez sejam muito mais verdadeiras e reais — ecoando pelos séculos, existindo em inúmeros continentes, falando dezenas de línguas, tocando inúmeras vidas — do que nós, pessoas pretensamente verdadeiras e reais, mas tão restritas por nossas limitações físicas, geográficas, cronológicas.
A ficção se utiliza do artifício e da mentira para transmitir verdades mais verdadeiras do que seria capaz a própria verdade.
Esse texto que você está lendo também é um texto de ficção.

A Verdade sobre Capitu

Dom Casmurro, romance publicado por Machado de Assis em 1899, conta a história de um adultério. Ou não.
Capitu é casada com Bentinho, cujo melhor amigo é Escobar. Um belo dia, Escobar morre e, poucos meses depois, Capitu dá a luz a um filho que é a cara do falecido. E aí?

* * *
Durante mais de meio século, leu-se Dom Casmurro como um romance de adultério. Nunca houve dúvida quanto à infidelidade da sem-vergonha Capitu. Somente em 1960, em O Otelo Brasileiro de Machado de Assis, Helen Caldwell levantou publicamente a questão: mas será que era?
(Não por acaso, a primeira pessoa a levantar essa possibilidade era não somente mulher, mas uma mulher estrangeira.)
Trinta anos depois, quando li Dom Casmurro no Ensino Médio, nossa professora fez o tradicional julgamento de Capitu. A maior parte da turma a considerava inocente (inclusive a professora) e um grupo menor defendia sua culpa. Sobrei eu pra ser juiz, o único que não tinha opinião formada.
Meu papel era somente julgar qual dos lados tinha levantado mais fatos e argumentos para provar sua opinião. As discussões foram acaloradas; amizades, desfeitas. Houve gente me acusando nos corredores de "anti-Capitu (ou pró-Capitu) desde criancinha".
Como aspirante a escritor, ver tantas adolescentes com tantas leituras tão divergentes e apaixonantes do mesmo texto só comprovava os efeitos concretos que a ficção exercia sobre a realidade.
Anos e anos depois, já no doutorado de literatura, lemos Dom Casmurro de novo. Dessa vez, o tom foi outro. Nenhuma das minhas colegas de sala teve a temeridade de sugerir o adultério de Capitu, mas falou-se bastante do falocentrismo da literatura canônica.
Um comentário que se ouviu muito no meu doutorado foram variações de:
"Como tanta gente pôde ler esse livro tão errado tanto tempo? É óbvio que o livro é sobre o ciúme louco e obsessivo de Bentinho, não sobre uma traição (que nunca existiu) da pobre Capitu! É tão óbvia a reticência do autor quanto à traição de Capitu que é simplesmente impossível ler o romance como um simples livro sobre adultério!"
Mas pode-se argumentar que o fato de o livro, seu autor e suas pessoas leitoras estarem inseridas em uma tradição literária falocêntrica é que torna ainda mais provável o tal adultério.
Afinal, se duas gerações de pessoas ao longo de sessenta anos viram o adultério de Capitu como autoevidente, então por definição o livro no mínimo permite essa leitura.
Dizer o contrário equivale a arrogantemente imputar uma cegueira imbecil às pessoas leitoras do passado.

* * *
Ainda usando o romance de exemplo, as pessoas defensoras de Capitu alegam em seu favor a reticência de Bentinho: se houvesse realmente alguma prova concreta do adultério, ele teria dito e feito fanfarra. Se não fala nada, é porque não há o que dizer.
Já as primeiras pessoas a ler o livro talvez pensassem como José Veríssimo, um dos principais críticos literários da época, em seu História da Literatura Brasileira (1915):
"Era impossível em história de um adultério levar mais longe a arte de apenas insinuar, advertir o fato sem jamais indicá-lo. Machado de Assis é, com a justa dose de sensualismo estético indispensável, um autor extremamente decente. Não por afetação de moralidade, ou por vulgar pudicícia, mas em respeito da sua arte. Bastava-lhe saber que a obscenidade, a pornografia, seriam um chamariz aos seus livros, para evitar esse baixo recurso de sucesso, ainda que a fidalguia nativa dos seus sentimentos não repulsasse tais processos."
E então, pergunto eu, Bentinho silencia porque nunca houve adultério e não havia o que dizer, ou porque Machado é um "autor extremamente decente" e não havia porque dizer com todas as letras o que já era tão óbvio que tinha acontecido?
Nunca saberemos. Não há possibilidade de haver uma resposta certa. Cada argumento sempre vai cortar para os dois lados.
Mais importante, que diferença faz?

* * *
Vai ver nem o próprio Machado sabia.
Vai ver o romance não é nem sobre uma adúltera safada que trai um pobre burguesinho (a certeza do adultério), nem sobre um homem obcecado por ciúmes que persegue sua inocente esposa (a certeza do não-adultério).
Vai ver é um romance sobre a dúvida.
Vai ver é um romance sobre como essa nossa busca obsessiva e pueril por uma tal Verdade com V maiúsculo pode destruir nossas vidas.

As pessoas mentem

Fui um adolescente gordo. Sempre que alguém me encontrava, o comentário era o mesmo:
"Puxa, como você emagreceu!"
Aquilo me intrigava. Afinal, eu sabia que não tinha emagrecido.
Desenvolvi várias teorias para explicar esse paradoxo.
Minha preferida era a seguinte:
As pessoas me rotulavam de gordo e pensavam em mim como "aquele gordo". Portanto, quanto menos viam o verdadeiro-eu, de carne e osso, e mais interagiam somente com "aquele-gordo" das suas memórias, mais eu engordava em suas mentes, até que, finalmente, quando me encontravam, eu parecia de fato bem menos gordo do que em suas imagens mentais de mim.
Sustentei essa teoria por muitos anos, bastante orgulhoso da sofisticação meu raciocínio.
Até que um dia me dei conta:
As pessoas mentem.
Mentem mal e mentem bem, mentem por carinho e mentem por malícia, mentem de propósito e mentem sem se dar conta, mas mentem o tempo inteiro.

* * *
Para mim, adolescente de pífio traquejo social, essa foi uma realização importante.
Eu não precisava sempre falar a verdade!
Quando uma pessoa de penteado horrível me pedia opinião sincera, eu podia dizer que "estava lindo"... e nada acontecia!
Deus não me fulminava. A pessoa não enxergava a mentira nos meus olhos. Eu não corava de vergonha. Nada disso.
Pelo contrário, o mundo se tornava um lugar melhor e mais agradável. As pessoas sorriam mais para mim. Eu era convidado para mais festinhas. Parecia mágica.
No ano seguinte, eu já era presidente do grêmio.

* * *
O que mudou minha vida não foi nem a percepção de que mentiam para mim, e nem de que eu também podia mentir de volta. (Quase todo mundo concluiu isso muito mais cedo do que eu!)
O que mudou minha vida foi quando me liberei da obrigação de questionar a veracidade do que as pessoas me diziam.
Vai ver a pessoa achou realmente que emagreci horrores. Vai ver a pessoa achou que sou um gordo disforme e, com a minha corpulência na cabeça e na ponta da língua, soltou o primeiro comentário simpático que pôde imaginar sobre esse tema. Vai ver ela simplesmente se treinou para dizer isso para toda pessoa gorda sem nem pensar.
Vai ver ela gostou sinceramente do meu penteado. Vai ver ela achou meu penteado horrível e falou que gostou dele só porque gosta sinceramente de mim e quis poupar meus sentimentos. Vai ver ela achou o meu penteado horrível, caga pros meus sentimentos, mas falou que gostou dele porque pensa que pode precisar de mim no futuro.
E daí que mintam pra mim? O que me importa? Que diferença faz?
A Verdade não vale nada.
Se não tenho acesso às emoções e pensamentos profundos das pessoas, por que perder tempo interpelando-os?
Só posso interagir com suas palavras e com suas ações.

A verdade como arma

Um amigo me conta:
"Traí minha esposa. Foi só uma vez. Já encerrei o relacionamento com a amante. Estou dedicado ao meu casamento. Ainda assim, sinto essa culpa me comendo por dentro. Não consigo nem dormir. Preciso contar a verdade para minha esposa!"
Mas... por quê?
Meu amigo está sofrendo com razão, pois sabe ter propositalmente violado o pacto monogâmico que estabeleceu voluntariamente com a companheira. O problema é que ele só está pensando em si mesmo: na sua traição, na sua consciência, no seu sono tranquilo, na sua verdade.
Contar a verdade sobre a traição, porém, especialmente se já encerrou o caso e está de novo comprometido com o casamento, serviria apenas para comprar sua paz de espírito às custas do sofrimento dela.
Seria utilizar a Verdade como arma para agredir a esposa novamente, uma nova agressão ainda pior do que a agressão original, que ela nem soube.
O que poderia ser mais cruel e egocêntrico?
Um tesão subindo à cabeça, uma traição ocasional, uma falta de controle momentânea, são todas mais compreensíveis e mais perdoáveis do que essa nova violência, perpetrada assim a frio, tão mais perversa.

* * *
Afinal, que Verdade é essa que tanto valorizamos?
Se a recepcionista do escritório aparece com um penteado (que eu acho) horrível, por que verbalizar essa (minha) Verdade? Serei eu por acaso fiscal dos penteados ruins do mundo?
Vale a pena causar um desconforto mínimo que seja em outra pessoa em nome de uma Verdade trivial dessas?
Se valorizo tanto a tal Verdade, por que não falar a Verdade, digamos, sobre os sapatos (que eu acho) incríveis que ela está usando hoje?
Talvez a melhor maneira de não usar a Verdade como arma seja somente refreando essa nossa ânsia egocêntrica por manifestar nossas "Verdades" não-solicitadas em assuntos que não nos dizem respeito — especialmente sobre os corpos de outras pessoas.
Poucas atitudes são mais verdadeiras do que saber a hora de engolir em silêncio as nossas ó-tão-importantes verdades.

* * *

Vale mais desinstalar programas ruins do que instalar programas bons

Quando nos tornamos pessoas adultas, nossa mente é como um computador que veio de fábrica com vários programas pré-instalados.
Não é nem que todos esses programas sejam lixo, mas também não é que sejam bons só porque foram instalados por pessoas em quem teoricamente confiamos (mães, professoras, amigas, etc) ou porque têm o aval da tradição e do costume.
Concluí que só eu podia ser o juiz de quais programas eu queria que rodassem no meu próprio computador, escolhidos de acordo com as minhas necessidades, personalizados para o meu uso pessoal.
Não queria viver a minha vida no modo default de fábrica.

E se todas as pessoas estiverem erradas?

Minha avó sempre dizia que manga com leite era uma combinação fatal. Um dia, tomei manga com leite e nada aconteceu. Hmm, pensei, vovó estava errada.
Meu padrinho sempre dizia que baiano era tudo preguiçoso. Um dia, fiz um trabalho na Bahia e a sua equipe foi tão trabalhadora quanto qualquer outra. Hmm, pensei, o padrinho estava errado.
O Hugo do 401 sempre dizia que todas as mulheres gostavam de levar um tapa na cara na hora do sexo. Um dia, comecei a namorar e nenhuma das mulheres com quem me relacionei gostava. Hmm, pensei, o Hugo do 401 estava errado.
Meu professor de História do ginásio sempre dizia que o Brasil era um exemplo de democracia racial. Um dia, em uma clínica onde todos os médicos eram brancos e os faxineiros, negros, eu finalmente me dei conta de que não era bem assim. Hmm, pensei, o meu professor de História estava errado.
Pouco a pouco, enquanto eu crescia e prestava atenção ao mundo, esses pequenos exemplos se acumulavam.
Até que, finalmente, a crise de fé já não podia mais ser ignorada:
Se meu pai e minha mãe, minhas professoras, minhas amigas, todas essas pessoas em quem confiei para me ensinar e me formar, estão erradas em tanta coisa que já comprovei e observei... então, como posso confiar em qualquer das outras coisas que me ensinaram?
Na melhor das hipóteses, algumas coisas que me ensinaram estão erradas e outras, certas. (Mas como diferenciá-las?)
Na pior das hipóteses, tudo o que me ensinaram está errado.
Tudo.

* * *
Nesse momento, percebi que nunca mais conseguiria, com a mesma inocência de ontem, responder a qualquer pergunta dizendo:
"Porque meu pai disse. Porque minha professora me ensinou. Porque o padre me contou. Porque fui criado assim. Porque na minha terra fazemos desse jeito."
Nesse momento, percebi que não tinha escolha a não ser correr atrás, por conta própria, de cada partícula de conhecimento que eu quisesse chamar de minha.
Nesse momento, adolescente ainda, comecei o longo e tortuoso processo (ainda em andamento) de me tornar uma pessoa humana adulta pensante.

E se eu estiver errado?

Afinal, se pessoas que me ensinaram tudo estavam erradas em tanta coisa... eu também devia estar errado em muita coisa.
Eu não sabia o que eu sabia.
Dentre as coisas que eu sabia, quais eu realmente sabia?
Dentre as verdades que me transmitiram, quais eram certezas?

* * *
Todas sabemos que nenhuma pessoa pode estar certa o tempo todo.
Racionalmente, portanto, sabemos que estamos erradas em muitos dos nossos conhecimentos e fatos e opiniões.
Emocionalmente, porém, é quase impossível aplicar esse conhecimento no nosso dia-a-dia: vivemos imersas na segurança de nossas verdades.
Como poderia ser diferente? Nossas opiniões nos parecem tão seguras, tão lógicas, tão abalizadas, tão autoevidentes! E, ao mesmo tempo, as opiniões opostas sempre nos parecem algo esquisitas, interesseiras, vendidas, desinformadas, apressadas.
Afinal, se eu não achasse que minhas opiniões são verdade, elas automaticamente deixariam de ser minhas opiniões.
Entretanto, apesar dessa imensa segurança nas minhas verdades, eu também sei que muitas das minhas verdades são necessariamente, indubitavelmente falsas.

* * *
“Não há nada no mundo mais bem distribuído do que o bom-senso”, escreveu Descartes, com um toque de ironia, na primeira frase do seu Discurso do método: “mesmo aquelas pessoas que acham que poderiam ser mais ricas, ou mais cultas, ou mais bonitas, ou mais instruídas, consideram que possuem bom-senso na medida certa.”
Mas o que pode ser mais egocêntrico do que a própria ideia de bom-senso, esse critério narcísico de medição do mundo? Todo homem-bomba se considera dotado do mais profundo bom-senso.
Os grandes crimes da humanidade foram todos cometidos por pessoas do mais inimputável bom-senso, carregando suas verdades na ponta das baionetas.

O lixo dos séculos, apodrecendo em mim

Antes mesmo dos vinte anos de idade, era impressionante o lixo dos séculos que já se acumulava na minha mente.
* * *
Alguns conhecimentos eram úteis e eu até me lembrava como tinham sido adquiridos.
Eu sabia, por exemplo, que o segredo para fazer o pão perfeito era borrifar água fria no começo da assadura, conhecimento adquirido depois de meses de tentativa e erro em uma cozinha de Nova Orleans.
Por outro lado, um dia, assisti um clipe de música colombiana e comentei com uma amiga que parecia "festa de porteiro".
Na mesma hora, fiquei horrorizado comigo mesmo.
De onde vinha tanta ojeriza anti-hispânica? Como a maioria das pessoas brasileiras, eu tinha pouquíssimo contato com o mundo hispânico. Nem mesmo conhecia a Colômbia.
Verdadeiro médium cultural, eu estava manifestando não a minha própria opinião, mas canalizando os preconceitos de incontáveis pessoas portuguesas que passaram quase um milênio defendendo sua independência contra todas as outras nações ibéricas, preconceito esse que foi devidamente herdado e mantido pelas pessoas brasileiras.
E por que a referência elitista aos porteiros?
Porque, no imaginário da minha classe social, ambos os tipos de pessoa, as porteiras e as hispânicas, eram gente vagamente marrom, de gel no cabelo (!) e com quem não se devia misturar.
Ninguém nunca precisou me dizer explicitamente que porteiro era algo vagamente indesejável: no meu círculo de pessoas amigas e parentes, não havia nenhum porteiro, ninguém que quisesse ser porteiro, ninguém que tivesse amigo porteiro, ninguém namorando um porteiro.
(Da mesma maneira, várias das minhas amigas e familiares sonhavam em morar na Austrália, Itália, Estados Unidos, mas nenhum em Cuba, Nigéria, Malásia.)
Um simples comentário de poucas palavras já revelou um caudal de conhecimentos nocivos em minha cabeça.
Eu lembrava bem de como tinha aprendido a borrifar água no pão... mas como tinha aprendido tanta besteira sobre pessoas porteiras e hispânicas, e sobre o gel que ambas teoricamente usavam no cabelo?
Ninguém nunca tinha me "ensinado" que hispânicas não eram tão "boas" quanto europeias, ou que porteiros não eram tão "bons" quanto médicos.
Mesmo assim, esses conhecimentos estavam lá, em minha cabeça, influenciando meus pensamentos e minhas ações, provocando comentários lamentáveis dos quais eu imediatamente me arrependia.
(Sobre nossa ojeriza anti-hispânica, veja a Prisão Patriotismo e o texto A hispanofobia brasileira.)

Limpando o disco rígido, programa por programa

Essa não era a única "Verdade" podre em meu cérebro: eu sabia mais, muito mais.
Eu "sabia" que loiras eram burras e vaidosas; gays, afetados e promíscuos, mulatas, fogosas e sensuais. Que o governo melhor é aquele que governa menos. Que os homens devem sempre ser cavalheiros com as mulheres.
E assim por diante, uma lista quase infinita de preconceitos, falsidades, distorções, mentiras, estereótipos, lugares-comuns.
De onde tinham vindo? O que estavam fazendo em uma mente que não lhes pertencia? Como eu pude nunca ter percebido a quantidade de lixo que apodrecia em mim?

* * *
Com menos de vinte anos de idade, minha mente era ainda um computador praticamente recém-chegado da fábrica, mas já repleto de programas maliciosos, vírus, malwares.
Então, comecei a limpeza do disco rígido. Programa por programa.
Para que serve esse programa? Quanto de memória ocupa? Vou precisar dele no futuro? Está atravancando a capacidade de processamento do meu computador? Está entrando em conflito com outro programa mais útil?
Muito mais urgente do que instalar novos programas úteis era desinstalar aqueles programas — alguns inúteis, outros nocivos — que estavam atravancando o bom funcionamento dos programas úteis e do computador em si.

Tomar posse do conhecimento

Meu projeto não era uma simples rebeldia de adolescente bem-alimentado, rejeitando todas as verdades que recebera só para ser do contra.
Eu não estava afirmando que todas as verdades que recebera estavam erradas, nem querendo rejeitá-las todas, mas apenas presumindo que eram falsas até segunda ordem.
Até que pudesse transformar essas verdades de outras pessoas em um conhecimento que fosse meu.

* * *
Exemplo de uma "Verdade" que encontrei em minha mente: o melhor jeito de armazenar pão de forma era fora da geladeira.
E me questionei: por que eu "sei" isso? De onde veio essa "Verdade"?
Da minha mãe, respondi. Ela sempre afirmou que era um absurdo colocar pão na geladeira.
E eu, hoje, adulto pensante e experiente, o que achava?
Bem, eu concordava. Fora da geladeira, as últimas fatias podiam até mofar, mas, dentro da geladeira, o pão inteiro já ficava ruim na hora.
Pois bem. Esse conhecimento agora era meu.

* * *
A partir desse momento, eu não era mais uma criança que deixava o pão fora da geladeira porque era assim que a mãe fazia.
Agora, eu era um adulto que armazenava o pão fora da geladeira por considerar, depois de alguma reflexão, que esse era o método mais apropriado.

A certeza, não a verdade

Uma amiga leu o primeiro rascunho desse texto e detectou uma contradição:
“No começo, você defende que não devemos ficar tão obcecadas com a Verdade, mas, logo depois, propõe questionarmos todas as Verdades do mundo para assim descobrirmos... o quê? A Verdade?!”
Não exatamente.
A "Verdade" sobre a melhor maneira de armazenar pão eu já possuía. Se o que eu quisesse fosse apenas a Verdade sobre esse e outros fatos, o meu projeto não faria sentido.
Só que não basta eu saber algo só porque minha mãe me ensinou — mesmo se essa informação por acaso estiver correta. (Mas, até que possa confirmá-la independentemente, preciso presumir que pode também por acaso estar errada.)
Dado que sei que minha mãe me ensinou algumas coisas certas e algumas coisas erradas, para que eu possa considerar algo que ela me ensinou como "Verdade" eu preciso comprovar essa informação por outros meios.
Preciso torná-la minha.
Preciso transformar "algo que minha mãe ensinou", ou seja, uma verdade que me foi transmitida, uma verdade endossada por uma figura de autoridade, uma verdade que, na melhor das hipóteses, será uma "verdade acidental", em "um conhecimento que possuo", um conhecimento adquirido por mim através de um método cético, através de uma reflexão racional, através de uma experiência prática.
Mesmo que o resultado final seja idêntico, ainda que o meu conhecimento conquistado seja igual à verdade dada, a simples aplicação do método cético faz toda a diferença do mundo.
Trocar a pergunta "isso é verdade?" por "tenho certeza disso?" muda tudo.

* * *
A Verdade é algo dado: fala-se em descobrir ou revelar a verdade, nunca em produzir ou criar a verdade.
A Verdade é algo que está lá, como a América, esperando para ser descoberta.
A Verdade quase sempre precisa de uma figura de autoridade que lhe garanta e lhe revele, que lhe endosse e lhe transmita: de mãe para filha, de mestre para discípula, de Deus para mortais.
A Verdade não precisa da pessoa humana: quando a humanidade se extinguir, a Verdade, assim como a América, ainda estará lá.
Já a certeza é um conceito cognitivo: nossas certezas são construídas por nós.
A certeza não pode ser passada de mãe para filha, de mestre para discípula, de Deus para mortais: cada pessoa precisa criar a sua.
A certeza precisa do olhar de alguém: só pode existir certeza se houver uma agente humana que se utilize de sua razão para afirmar, na primeira pessoa, ativamente, "eu tenho certeza".
A certeza precisa da pessoa humana: quando a humanidade se extinguir, não restará mais ninguém para ter certeza de nada

* * *
Não quero as verdades da minha mãe, não por uma rejeição pueril a ela, mas porque quero construir as minhas próprias certezas.

O método cartesiano de Descartes

O método que estou propondo nada mais é do que minha variação pessoal do Método Cartesiano, proposto pelo filósofo francês René Descartes em seus livros Discurso do método (1637) e Meditações sobre filosofia primeira (1641), onde ele faz a pergunta inaugural da filosofia moderna:
"O que eu sei?"
* * *
"Percebi faz algum tempo", escreveu Descartes, "quantas coisas falsas eu tinha aceitado como verdadeiras desde a infância e o quão duvidoso e incerto era o edifício do conhecimento que eu tinha levantado sobre bases tão precárias. Por isso, se eu quisesse estabelecer algo de firme e duradouro nas ciências, era necessário, pelo menos uma vez em minha vida, me desfazer de todas as opiniões que até então dera crédito, derrubar todo esse edifício e começar outra vez a partir das primeiras fundações."
"Não é meu interesse, porém," ele faz questão de afirmar, "dizer às outras pessoas o que fazer, mas simplesmente reformar meus próprios pensamentos e construir em um terreno que seja apenas meu."
"O empreendimento me parece gigantesco," continua ele, "mas as circunstâncias da minha vida, unindo o ócio e o conforto à certa maturidade, indicam que agora é a hora oportuna de me aplicar, com seriedade e liberdade, à demolição geral das minhas opiniões atuais."
"Assim como acontece ao demolir uma velha casa," escreveu, "quando se conservam os entulhos para serem utilizados na construção de outra nova, assim, ao destruir todas as minhas opiniões mal alicerçadas, eu ia fazendo diversas observações e adquirindo muitas experiências, que me serviriam mais tarde para estabelecer outras mais corretas."
"Antes de demolir a casa velha e reconstruí-la de novo, entretanto," aponta, "era preciso ter onde morar enquanto durassem as obras, ou seja, ter ao menos uma certeza indubitável onde eu pudesse habitar."
"Afinal," diz ele, "se Deus me concedeu a capacidade de distinguir o verdadeiro do falso, não era para que eu me contentasse com as opiniões dos outros, e sim para que eu utilizasse o meu próprio juízo para analisá-las, segui-las, descartá-las."
(O texto acima é uma paráfrase de vários trechos do Discurso e das Meditações.)

 * * *
Assim, desconfiando da evidência dos seus sentidos, Descartes se propõe a desaprender todas as verdades sobre as quais não tivesse certeza.
Finalmente, só lhe resta uma única certeza, o tijolo fundacional onde reerguerá o edifício do conhecimento:
"Penso, logo existo".
Se ele estava ali, pensando aquelas questões, então, era porque existia.
Disso, e apenas disso, ele poderia ter certeza.

Ando, logo existo

Por que Descartes diz "penso, logo existo" e não "respiro, logo existo" ou "ando, logo existo"?
Afinal, quem anda necessariamente existe, não? Seria possível, ao mesmo tempo, ser capaz de andar e não existir?

* * *
Uma das premissas fundamentais de Descartes é que nossos sentidos são falhos e sempre podem estar nos iludindo.
Portanto, em algumas circunstâncias bem específicas, poderia até fazer sentido dizer “penso que estou andando, mas não estou andando” (um sonho, uma ilusão, uma realidade virtual simulada, etc), mas jamais faria sentido dizer “penso que estou pensando, mas não estou pensando”.
Por isso, outro lado, para Descartes, também teria sido possível formular a sua certeza primordial nos seguintes termos:
"Penso que estou andando, logo existo".
Para Descartes, o que importa, o que garante que ele existe, não é o ato mecânico de existir (ou de andar, ou de respirar) e sim sua consciência de que existe (ou de que anda, ou de que respira).
Ou seja, uma vez mais, voltamos ao "penso" como condição primordial.
Essa talvez seja a essência do Método Cartesiano: não basta a verdade de que estamos andando, precisamos da certeza de que estamos andando.

O quanto preciso saber para poder saber?

Acontece muito comigo.
Alguém chega e pergunta minha opinião sobre algo. O escândalo na Petrobrás, a crise na Ucrânia, a transposição do rio São Francisco.
Quase sempre, minha resposta é a mesma:
"Não tenho conhecimento o suficiente sobre esse assunto para poder emitir uma opinião."
Aparentemente, essa minha resposta soa como uma matrícula em um curso, pois no instante seguinte já estou assistindo uma aula expositiva sobre o tema.
Enfim, quando a pessoa termina sua explanação não-solicitada sobre os malefícios (ou benefícios!) da usina de Belo Monte, eu até agradeço, mas só por educação. Afinal, se eu quisesse saber sobre esse assunto, teria buscado informações eu mesmo.
Mas até aí, tudo bem. Ouvir pessoas falando sobre seus interesses quase sempre é bastante educativo. O pior é que elas ainda não desistiram de arrancar de mim algum posicionamento:
"Bem, agora que te contei tudo sobre a crise hídrica de São Paulo, qual é a sua opinião?"
E eu, com o maior tato possível, sabendo que estou andando em terreno minado, respondo:
"Hmm, desculpe, mas eu continuo sem ter conhecimento o suficiente sobre esse assunto para emitir uma opinião."
Se houver um jeito mais delicado de falar isso, por favor, me contem. Por enquanto, a reação das outras pessoas é quase sempre de ofensa:
"Coooomo assim?! Está me chamando de mentirosa? Mas eu não acabei de ficar aqui meia hora te contando tudo o que está acontecendo na Síria?"
E eu tento explicar, de modo que não se ofenda ainda mais:
"Bem, agora eu tenho bastante conhecimento sobre a sua opinião em relação à Reforma Eleitoral. Aliás, só com base no que falou, já dá para deduzir muito sobre quais jornais você lê, em quem votou para presidente, quais suas posições políticas, etc, mas continuo sem possuir conhecimentos suficientes e adequados sobre a Reforma para poder emitir uma opinião sobre ela."
Não adianta. Por mais que eu insista, a pessoa sempre acha que estou chamando-a de mentirosa.
* * *
O quanto é necessário saber sobre um assunto para que possamos considerar que "sabemos" aquele assunto?
Se todas as nossas informações sobre um assunto vierem da mesma fonte, mesmo se muito abalizada, mesmo se muito querida, podemos realmente considerar que "sabemos" aquele assunto?

SUS: um estudo de caso

Uma das dificuldades de escrever um texto como esse é a seguinte:
Se não dou exemplos, o argumento fica abstrato demais e muitas pessoas leitoras se perdem; se dou exemplos, muitas pessoas se concentram somente neles, atacando-os ou defendendo-os, e perdem de vista o argumento.
Então, consciente dos riscos, considerei importante exemplificar com mais detalhes o método que estou descrevendo. Peço às pessoas leitoras que se apeguem mais ao argumento sendo desenvolvido e menos às minúcias do exemplo em si.

* * *
Um dia, em uma conversa aleatória, me referi ao SUS, o Serviço Único de Saúde brasileiro, como  "um serviço público completamente caótico e desfuncional".
Minha companheira, sempre atenta às traições que cometo contra a pessoa que quero ser, logo questionou:
"Quem é que sabe que o SUS é 'um serviço público completamente caótico e desfuncional'? Você ou sua família?"
Era uma boa pergunta: por que eu "sabia" que o SUS era "um serviço público completamente caótico e desfuncional"? O que essa Verdade estava fazendo em minha mente, tão concreta e tão autoevidente, tão acrítica e tão não-problemática, ao ponto de ser repetida por mim em conversas?

* * *
No meio social onde eu crescera, classe média alta da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, no final do século XX, era uma Verdade inquestionável e autoevidente, daqueles que naturalmente não precisam ser nem justificadas nem defendidas, que não só o SUS mas quase todos os serviços públicos, do transporte à educação, eram caóticos e desfuncionais.
Mais ainda, essa Verdade era indissociável de um certo liberalismo econômico de tendências conservadoras quase unânime entre essas mesmas pessoas, baseado em premissas também autoevidentes para elas, como a idealidade do Estado mínimo e a superioridade da iniciativa privada sobre os serviços públicos.
E, por incrível que pareça, apesar de eu ter me afastado desse ambiente há décadas justamente por rejeitar essas Verdades, ainda assim eu me pegava distraidamente agindo como seu porta-voz!

* * *
Uma ressalva importante:
Somente o fato de essa Verdade quase hegemônica nessa classe social (de que o SUS e outros serviços públicos são caóticos e desfuncionais) estar perfeitamente alinhada com posição política quase hegemônica dessa mesma classe social (liberalismo econômico de tendências conservadoras) não quer dizer que essa Verdade seja necessariamente falsa.
Afinal, nossas verdades estão quase sempre alinhadas às nossas posições políticas.

* * *
Mas de onde vinha essa Verdade? Como essas pessoas sabiam que o SUS era caótico e desfuncional?
Tinham acesso a dados estatísticos que demonstravam a superioridade da medicina privada? Tiveram experiências pessoais terríveis no SUS?
Por ter crescido entre essas pessoas, eu sabia que a resposta para as duas últimas perguntas era "não". Algumas delas, inclusive, pagavam seus planos de saúde particulares com muito sacrifício.
Entretanto, quando uma pessoa tem uma opinião que considera autoevidente, qualquer pergunta sobre ela já soa como uma crítica e um desafio:
"Porra, Alex, é óbvio que o SUS é uma merda! Você parece que gosta de ser do contra, só pode!"
Então, fiz a pergunta com cuidado:
"Como você sabe que o SUS é caótico e desfuncional?"
* * *
Recebi variações das seguintes três respostas:
1. Era autoevidente que o SUS era caótico e desfuncional porque, por definição, qualquer serviço público sempre seria pior que um serviço privado e, além disso, o governo de um país em desenvolvimento como o Brasil jamais poderia oferecer um serviço médico para 200 milhões de pessoas com a mesma qualidade dos melhores hospitais particulares do Rio e de São Paulo;
(Quanto a isso, eu não tinha comentários: era um dogma de fé.)
2. As funcionárias de suas empresas ou as empregadas domésticas de suas casas contavam histórias de terror do SUS, de filas intermináveis, de esperas longuíssimas, etc.
(Apesar de serem de segunda mão, essas histórias de terror bem podiam ser verdade. Mas, por outro lado, se eu trabalhasse para essas pessoas, capitalistas até a raiz da alma, eu preferiria inventar que passei duas noites na fila do posto de saúde — logo, preciso de dois dias de folga, patroa! — do que dizer que fui atendido em meia hora na UPA perto de casa.)
3. Tinham visto/lido/ouvido várias reportagens sobre o caos do SUS na Veja/ Globo/CBN/Estadão/etc.
(Essas reportagens bem podiam ser verdade. Mas, por outro lado, esses veículos de mídia, além de compartilharem do mesmo liberalismo econômico de tendências conservadoras, também tinham um forte interesse financeiro em torpedear o SUS. Afinal, se o SUS funcionasse como deveria e fosse utilizado satisfatoriamente por todas as pessoas cidadãs brasileiras, esses veículos perderiam toda a enorme receita publicitária dos planos de saúde particulares. Então, presumindo que há tanto méritos e falhas no SUS, esses veículos sempre vão cobrir com mais ênfase e mais destaque as falhas do que os méritos.)

* * *
Nesse ponto, alguma pessoa leitora talvez me interpele:
"Bem, Alex, se eu não posso dizer que o SUS é caótico e desfuncional, você também não pode dizer que o SUS é lindo e eficiente!"
Sim. É por isso que em nenhum momento eu fiz essa afirmação.

* * *
Todas as propagandas oficiais do governo sobre o SUS têm o mesmo interesse explícito em enaltecê-lo que a grande mídia tradicional tem em torpedeá-lo. Uma anula a outra.
Seguramente existem dados e relatórios estatísticos extensos comparando o SUS à rede privada e estabelecendo metas e padrões para o atendimento às pessoas cidadãs. Mas quem lê esses relatórios? Provavelmente nem os membros do Congresso cujas decisões deveriam ser determinadas por esses dados.
Posso afirmar que, na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) de Copacabana, sempre fui atendido tão bem quanto em todos os bons hospitais privados que já utilizei em três países.
Mas foram atendimentos sem gravidade, em uma única UPA, em um bairro de elite, turístico e icônico, da segunda maior cidade do país, ex-capital e porta de entrada da América Latina.
E se fosse câncer na próstata ou faca na barriga, em vez de pressão alta e infecção estomacal?
E se fosse no interior do Pará, em vez de na zona sul da cidade do Rio de Janeiro?
Nenhuma das minhas muitas experiências pessoais e anedóticas na UPA de Copacabana me permite fazer extrapolações para o SUS como um todo, em um país de dimensões continentais, duzentos milhões de habitantes e a mais profunda desigualdade.

* * *
Apesar de todas as minhas muitas interações positivas com o SUS, não me sinto abalizado para afirmar que "o SUS é bom".
Se você me perguntar sobre o SUS, vou te dar mesma opinião que tenho sobre a crise na Ucrânia:
“Não tenho conhecimento o suficiente sobre esse assunto para poder emitir uma opinião.”
Já as pessoas entre as quais eu cresci continuam não hesitando em bater no peito para afirmar o autoevidente caos no SUS — mesmo sem nenhuma vivência pessoal ou dado estatístico sobre o SUS.
Então, afinal, o que é "saber"? Quanta certeza precisamos ter para podermos afirmar que "sabemos" de algo?

* * *
Algumas pessoas leitoras talvez considerem que estou propondo um padrão inalcançável. (Descartes foi acusado da mesma coisa.) Que, de acordo com esse método, seria praticamente impossível formar uma opinião. Que não teríamos nunca como saber nada com certeza.
Mas será que isso é tão ruim assim?
Será que já não nos damos ao direito de ter e articular opiniões demais, sobre tudo, o tempo inteiro?
Não seria melhor exercermos um saudável estado de não-opinião?
(Esse aliás é o sexto exercício de empatia, a ser publicado em fevereiro aqui no PapodeHomem: Exercer a não-opinião.)

Ler mais para saber menos

De vez em quando, eu me interesso sobre algum assunto e decido me informar mais. Para isso, leio pelo menos dois livros inteiros sobre o tema.

* * *
Se quero me informar sobre como Euclides da Cunha narraria a Guerra de Canudos, quais recortes escolheria, quais aspectos enfatizaria, etc, eu posso ler Os sertões (1903).
Mas, se quero me informar minimamente sobre a Guerra de Canudos em si, eu preciso ler, pelo menos, mais um livro sobre o assunto.

* * *
Para escrever a Prisão Verdade, reli o Discurso do método (1637) e as Meditações sobre filosofia primeira (1641), de Descartes.
Li também quatro livros sobre ele, desde introduções como Descartes em 90 minutos (1996), de Paul Strathern, até o magistral Descartes: The project of pure inquiry (1978), de Bernard Williams, passando por Descartes, de Margaret Wilson, e Descartes: Belief, scepticism and virtue (2001), de Richard Davies.
Cito esses títulos não apenas para dar a bibliografia da Prisão Verdade, mas para levantar a seguinte questão: somente o livro de Williams, vastamente superior e realmente um clássico, já teria sido mais do que suficiente para eu escrever o meu texto.
Mas aí eu seria refém da leitura de Williams de Descartes, por melhor que essa leitura fosse.
Então, quando eu escrevesse sobre Descartes aqui na Prisão Verdade, mesmo se o resultado final do texto fosse idêntico para as pessoas leitoras, eu estaria de fato canalizando o Descartes de Raymond Williams, visto através do prisma dos interesses e das limitações, dos preconceitos e da biografia de Raymond Williams.
Se eu só tivesse lido Williams, o Descartes de Alex Castro estaria contido no Descartes de Raymond Williams.
Mas quero falar do meu Descartes, visto através do prisma dos meus interesses e das minhas limitações, dos meus preconceitos e da minha biografia:
Eu me compadeço da morte de sua única filha, aos cinco anos; me revolto por ele ter finalmente aceito o convite da Rainha da Suécia, só para morrer lá, de frio, aos meros 53 anos; discordo violentamente da separação que faz entre mente e o corpo (quando falo que "você é o que você faz", estou sendo radicalmente anti-cartesiano – sobre isso, leiam O erro de Descartes [1994], de António Damásio); considero que a maneira como prova a existência de Deus é tão desastrada, tão destoante do resto da sua obra, que não dá para saber se ele realmente tinha tanta fé que não percebeu que o seu método desprovava a existência de Deus, ou se foi apenas para evitar represálias da Igreja e fugir do destino de Galileu.
Mais do que tudo, quero falar do Descartes que propôs o Método Cartesiano de ceticismo sistemático que eu, aqui do meu jeito torto e limitado, tento utilizar até hoje.
(Para as pessoas que talvez tenham ficado confusas com a diferença entre os conceitos de Verdade, certeza e conhecimento utilizados no meu texto, recomendo muito o livro de Raymond Williams.)

* * *
Ler apenas um livro dá uma falsa sensação de conhecimento. Passamos de não saber nada para saber muita coisa sobre a Guerra de Canudos em poucos dias. Chega a ser intoxicante e tentador pensar que "agora sim conheço a Guerra de Canudos!"
Mas não. Conheço apenas o recorte específico, as perspectivas e as opiniões, daquela pessoa autora sobre a Guerra de Canudos. E olhe lá.
Ler um segundo livro sobre o mesmo assunto quebra esse efeito. Provavelmente, ambos os livos vão dialogar entre si, trocar citações ou trocar refutações, trocar elogios ou trocar farpas.
De repente, nos damos conta que a história da Guerra de Canudos não é tão simples quanto pensávamos, que existe muita discordância mesmo entre as pessoas que realmente conhecem a Guerra de Canudos, que a história da Guerra de Canudos ainda está sendo escrita e reescrita.
Aquela interpretação sobre Antônio Conselheiro que me parecia tão sólida e pouco problemática no primeiro livro (até citei, empolgado e inocente, para os amigos na mesa de bar!) é justamente a interpretação que o segundo livro desconstrói impiedosamente. E vice-versa.
No caso da Prisão Verdade, várias afirmativas bobas que eu teria feito sobre Descartes foram abortadas e nunca chegaram ao meu texto final, por eu ter percebido, lendo um livro contra o outro, que filósofos muito mais inteligentes que eu já vinham discutindo aquela questão há séculos sem conseguir chegar a um acordo.

* * *
Eu leio mais de um livro sobre o mesmo assunto não para saber mais sobre o assunto.
Eu leio mais de um livro sobre o mesmo assunto para me dar conta da minha enorme ignorância sobre o assunto.

Ler menos para saber mais

Quando se escreve profissionalmente, pessoas leitoras e jornalistas sempre nos pedem por "recomendações de leitura".

* * *
Mesmo em um país de poucas pessoas leitoras como o Brasil, o lobby da leitura é fortíssimo.
Não lemos quase nada, mas colocamos a leitura no mesmo altar quase-religioso onde já estão a atividade física e a comida saudável.
Discordamos em tudo, mas concordamos que deveríamos estar todas lendo mais, malhando mais, comendo melhor.
Gastamos fortunas em comidas orgânicas que não gostamos, em academias que não frequentamos, em livros que não lemos, e depois nos martirizamos por fracassar em nosso projeto de sermos pessoas mais lidas, mais saradas, mais saudáveis.

* * *
As pessoas que realmente querem ler leem o tempo todo. Estão lendo agora. Aproveitam cada cinco minutos no metrô ou na fila do banco para ler mais duas pagininhas, como um fumante ansioso que aproveita qualquer oportunidade para ir fumar um cigarrinho lá fora.
Já as pessoas que dizem
"Ah, eu queria tanto ler mais..." (ou fazer mais ginástica, ou comer mais vegetais, etc)
não querem realmente ler mais.
Elas apenas acreditam sinceramente que essas atividades (ler, malhar, comer melhor, etc) são intrinsecamente boas e indispensáveis para a identidade que estão construindo para si mesmas, de pessoas cultas, saradas, saudáveis, e, por isso, desejam ardentemente querer fazer essas coisas.
Mas não querem. Porque, se quisessem, já estariam fazendo, não querendo fazer.
Como escritor, eu gostaria de poder absolvê-las dessa ansiedade: ninguém precisa ler. Ler não é intrinsecamente bom. Ler é um passatempo como qualquer outro. Existem mil maneiras de aprender os fatos do mundo e de se tornar uma pessoa melhor sem passar pela leitura.
Se gostam de ler, leiam. Se não gostam, não se culpem.

* * *
Então, sempre que me pedem por "recomendações de leitura", recomendo que não leiam nada.
Pergunto: quanto tempo em média passaria lendo um livro de, digamos, duzentas páginas? Oito, dez horas ao longo de quatro, cinco dias?
Então, economize o valor do livro, encontre um lugar tranquilo em sua casa e ocupe esse tempo fazendo a jardinagem do seu cérebro, podando galhos, arrancando ervas daninhas.
Quantos preconceitos, falsidades, distorções, mentiras, estereótipos, lugares-comuns você não tem aí dentro?
Em vez de absorver mais e mais novas verdades, em um verdadeiro frenesi acumulativo cultural, coloque o lixo para fora.
Em vez de ler, des-leia. Em vez de aprender, desaprenda.

A verdade sobre As Prisões

Esses são textos de ficção, escritos por um autor de ficção, que assina um nome de ficção.
Talvez crônicas ensaísticas, talvez romance pós-moderno. Talvez histórias filosóficas, talvez ensaios narrativos.
Toda e qualquer anedota aparentemente autobiográfica nos meus textos foi inventada por mim, para fortalecer ou ilustrar um argumento, e não possui relação alguma com a realidade.
A verdade raramente é verossímil. Quanto mais verdadeiras parecerem as histórias, mais mentirosas serão.
Na verdade, quase todas são reais, mas nenhuma é verdadeira. Algumas que digo que aconteceram comigo na verdade aconteceram com outras pessoas. Algumas que digo que aconteceram com outras pessoas na verdade aconteceram comigo. E vice-versa.
Para evitar que meus textos se tornassem relatos egocêntricos da minha vida, todas as anedotas autobiográficas são consistentemente contraditórias, apenas acessórios a serviço de algum argumento sendo desenvolvido.
Eu sou irrelevante.
O que importa é a mensagem, nunca o mensageiro.
O que importa são as ideias sendo expostas, não a pessoa que as está expondo.

* * *
Talvez minhas intenções sejam as piores possíveis. Talvez eu tenha escrito o oposto do que realmente penso. Talvez eu tenha sido do contra só para criar polêmica. Talvez eu tenha dito tudo o que as pessoas queriam ouvir.
E daí? Minha mentira pode ser a sua verdade. Minha ironia, seu dogma.
Você, a pessoa destinatária, é muito mais importante do que eu, a remetente. É você que decifra, interpreta e contextualiza a mensagem. O meu texto vai dizer o que você disser que ele disse.
Se gosta do que escrevo, se meus textos lhe ensinam alguma coisa, se julga que minhas ideias têm algum valor, então, essa é uma verdade mais importante do que qualquer verdade sobre minha biografia ou minhas intenções.
Se não gosta, se não ensinam, se não têm valor, então a verdade sobre os detalhes da minha vida importa menos ainda.
Só o texto importa.

Alex Castro não existe

Alex Castro, na verdade, não existe.
Alex Castro é um mentiroso patológico: mente sobre sua vida, seus sentimentos, mente até sobre mentir. Não dá pra confiar em nada do que escreve. Principalmente sobre ele mesmo.
Alex Castro é um grande fingidor: ele mente para convencer os outros ou acredita em suas próprias fantasias?
Alex Castro é um narcisista que finge não ser? Ou finge que é o narcisista que não é?
Alex Castro não existe, mas você existe. Pode se apalpar. Se você pensa que está lendo esse texto, logo, você existe.
Alex Castro não importa, mas você importa
Alex Castro não existe, mas os minutos que você passa lendo os textos dele existem: para o bem ou para o mal, são concretos e foram perdidos para sempre.
Alex Castro não existe, mas tudo o que Alex Castro faz surgir em você, seja raiva ou desprezo, reflexão ou respeito, existe.
Não adianta tentar entortar a colher: a verdade é que a colher não existe.
É só você, o tempo todo.

A última palavra é de Descartes

"Não quero dizer como cada pessoa deve conduzir sua razão, mas apenas mostrar como me esforcei para conduzir a minha. Só pessoas que se consideram superiores têm o atrevimento de ditar normas às outras e, quando erram em qualquer coisa, já são logo censuradas. Mas como não ofereço esse texto senão como uma história, ou talvez uma fábula, onde se encontrarão alguns exemplos para seguir e muitos outros para evitar, espero que será útil a alguns sem ser nocivo para ninguém, e que todas as pessoas serão gratas por minha franqueza." (Discurso do Método, parte I, grifo meu)

Três avisos importantes sobre meus textos

Eles falam sempre sobre e para as pessoas privilegiadas, justamente para tentar fazê-las ter consciência de seus enormes privilégios (Leia também Carta aberta às pessoas privilegiadas & Ação de graças pelos privilégios recebidos);
Buscam sempre usar uma linguagem de gênero neutra (Para mais detalhes, confira meu mini-manual pessoal para uso não sexista da língua);
E são sempre todos rigorosamente ficcionais(Ou não: Alex Castro não existesó o texto importa. Em caso de dúvidas, consulte minha biografia do meu site pessoal.)

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O encontro “As Prisões”

Há doze anos, escrevo sobre as bolas de ferro mentais e emocionais que arrastamos pela vida: as ideias pré-concebidas, as tradições mal-explicadas, os costumes sem-sentido.
Agora, estou promovendo o encontro ”As Prisões” por todo Brasil. O público-alvo são ovelhas negras em busca de interlocutores. O encontro oferece a oportunidade de passarmos o dia inteiro trocando histórias, compartilhando vidas, debatendo perplexidades. Ao final, nós, todas as pessoas, estamos exaustas, gastas, esvaziadas. Confusas, atarantadas, chacoalhadas.
O encontro “As Prisões“ é independente por ideologia. Não possui vínculo institucional algum. É divulgado pela internet de forma alternativa e realizado em praias, parques, quintais, praças. Oferece frutas e castanhas para comermos ao longo do dia e tem um intervalo para almoço. Começa sempre às nove da manhã de sábado ou de domingo e termina na hora que terminar. Muitas vezes, a química é tanta que não queremos ir embora: o encontro mais longo durou 15 horas.
O encontro é pago. Mas negar uma pessoa só porque ela não pode pagar seria dar importância demais a essa convenção arbitrária que chamamos dinheiro. Portanto, algumas pessoas pagam, outras pagam menos, outras não pagam. Na prática, as que pagam me possibilitam fazer o encontro para as que não pagam. Nada poderia ser mais solidário do que isso. (Para saber mais, consulte a política de gratuidades.)
Não é auto-ajuda, terapia, coaching. Não é palestra, aula, exposição de conteúdo. Não tem apostila, powerpoint, frases de efeito pra anotar no moleskine. Não oferece respostas, soluções, remédios. Não promete uma vida mais calma, mais centrada, mais bem-sucedida.
Não ajuda em nada. Pelo contrário, só atrapalha. Às vezes, nos transforma em pessoas ainda mais confusas, desajustadas, perdidas. Afinal, ser bem-sucedida e bem-ajustada em um mundo canalha pode bem ser indicativo de nossa própria canalhice.
Em 2013 e 2014, levei o encontro “”As Prisões” para quase todas as capitais do Brasil. Em 2015, vou realizar encontros somente no Rio de Janeiro.
Para mais detalhes, vídeos, depoimentos, calendário completo, tudo isso, veja aqui.
Ao longo de 2015, todas As Prisões serão enviadas primeiro, com exclusividade, às pessoas assinantes do meu newsletter e, então, publicadas aqui no PapodeHomem. Confira as que já foram publicadas.

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Nota do editor: as imagens desse texto não são pinturas. São fotografias de pessoas e espaços reais, obra da artista plástica Alexa Meade.

Fonte: Papo De Homem

Por claudia regina 6jul13 1 1024x682
Alex Castro
alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // se gostou, assine minha newsletter e receba meus novos textos por email.