quinta-feira, 31 de julho de 2014

Afetos infantis


 
 
 
Os afetos infantis são sempre excessivos, transbordantes, duradouros. Quando o amor pela mãe é onipotente, ele não pode ser contido pelo Eu, facilmente se transforma  em aversão, raiva, vergonha, ressentimento - são inúmeras as formas de tentar dar um destino ao que não cabe em si. O primeiro encontro com o outro - a figura materna ou seu substituto - desperta em nós o incabível. Este, muitas vezes, só encontra seu lugar no reconhecimento, ainda que tardio, da dor das diversas formas de perda e suas recusas.  A dor da perda nos impõe o reconhecimento da fragilidade humana: a nossa e a de nossas mães - o encontro com o incabível do amor. Na precariedade do início da vida, o encontro com o outro-mãe inscreve em nós não só o amor, mas, também, a marca da finitude.  Depois do fim, ainda resta o amor. (Evelin Pestana, Casa Aberta - Página, Psicanálise, Artes, Educação).
Ilustração: Christina Schloe
Ilustração: Christina Schloe
Os afetos infantis são sempre excessivos, transbordantes, duradouros. Quando o amor pela mãe é onipotente, ele não pode ser contido pelo Eu, facilmente se transforma em aversão, raiva, vergonha, ressentimento - são inúmeras as formas de tentar dar um destino ao que não cabe em si. O primeiro encontro com o outro - a figura materna ou seu substituto - desperta em nós o incabível. Este, muitas vezes, só encontra seu lugar no reconhecimento, ainda que tardio, da dor das diversas formas de perda e suas recusas. A dor da perda nos impõe o reconhecimento da fragilidade humana: a nossa e a de nossas mães - o encontro com o incabível do amor. Na precariedade do início da vida, o encontro com o outro-mãe inscreve em nós não só o amor, mas, também, a marca da finitude. Depois do fim, ainda resta o amor. 
 
 
(Evelin Pestana, Casa Aberta - Página, Psicanálise, Artes, Educação).

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Carta aberta a você que ainda acredita no amor

 

Você sabe que tem gente se matando agora, não sabe? Tem um povo bombardeando outro, crianças apavoradas, mulheres subjugadas. Uns homens soltam bombas, outros prendem o choro. Edifícios desabam fáceis, sob a mira dos mísseis prateados, impecáveis. Famílias se desmancham como papelão na enxurrada, canalhas fogem com o dinheiro do povo. Ódio vira regra, medo se faz prática, desespero se torna música. O sucesso de audiência é a nossa escandalosa miséria de todos os dias.
E você, decerto, já se deu conta do quanto sobrevivemos desviando, esquivando, escapando, correndo uns contra os outros. Não que eu acredite que isso tudo vá mudar por obra da nossa mais pura e simples vontade esperneada. Mas eu tenho a impressão de que a gente devia passar mais tempo juntos, sabe?
Porque assim, juntos, talvez a gente perceba, cheios de vergonha, o quanto se deixou convencer de que essa porcaria toda é “normal”. Normal, assim, como um cachorro ordinário que morde o outro porque tem todos aqueles dentes pontudos e eles não podem ficar ali na bocarra sem uso e você sabe, cachorro morde mesmo, morde por puro instinto.
Juntos, quem sabe a gente compreenda que “normal” é coisa nenhuma! E que é preciso resgatar do fundo da gaveta aquela velha capacidade de indignação desbotada que fazia tanto sucesso no verão passado.
Quem sabe assim teremos, para cada declaração de guerra, um milhão de declarações de amor rasgadas, confessadas sem pudor a quem quiser ouvir. E na esteira de cada afirmação amorosa seguirão novos gestos e atitudes renovadas e medidas de amor desmedidas.
Para cada um dos longos anos que nos separaram até agora, brotarão das rachaduras no asfalto florestas de instantes a nos unir em abraços emocionados de encontro e festa.
É, sim. A gente devia passar mais tempo juntos. Devia parar e sentar e conversar e lembrar nossas coisas. E lá, no terreno baldio das lembranças saborosas, estaremos nós, engatinhando por uma selva de pernas enormes em uma festa chata de adultos enfadonhos, ouvindo ao longe suas conversas altas e miradas importantes, até uma hora chegarmos ao abrigo sob a mesa grande, de onde roubaremos uns brigadeiros e cajuzinhos para nossa ceia secreta e submersa, protegidos do mundo e de suas questões inatingíveis em nosso universo simples e subterrâneo.
De nosso encontro, soltaremos os risos que um dia seguramos para a foto até doer o rosto. E a cada risada alta, o amor há de acordar de seu sono, o amor e sua energia atômica, sua força motriz poderosa, sua vontade que a tudo movimenta e estremece acenderá nas sombras e explodirá feito as bombas dos facínoras.
Seu estrondo despertará nossas coisas de amor que nos arrancam do sofá e nos põem de pé, em movimento, a seguir nosso caminho de um tempo novo, a seguir cenas dos próximos capítulos, rodadas na descida de nossa serra do mar, nosso corredor da vida onde se vai adiante mais do que se espera cair do céu.
Porque do céu nada cai exceto nós mesmos, despertos de nossos sonhos de grandeza em cada pequeno acaso de nosso dia depois do outro.
Juntos, aprenderemos de novo a pedir com jeito, a trabalhar com força e desejo e honestidade, repetindo delicadezas em todos os idiomas, batucando textos de amor como pretextos para amar.
E em nossa imaginação amorosa, inventaremos pessoas, cenas, famílias, festas, churrascos de domingo, casamentos repletos de gente amiga, disposta a reescrever a história toda. Ou ao menos a nos fazer sentir menos sós.
Assim, juntos, irmanados pela aventura do amor à vida, a nós mesmos e ao outro, criaremos uma nova ordem, um novo estado de coisas, e escreveremos a milhares, milhões, bilhões de mãos a nossa declaração universal dos direitos e deveres de amar.
Não que eu acredite que toda a miséria do mundo assolado pela raiva e a burrice vá frear sua marcha louca de uma hora para outra, e os exércitos se ajoelhem sob a beleza de um arco-íris monumental debruçado sobre todos os continentes. Mas ao menos estaremos juntos.
Amantes, amores, amados, avante. Ao trabalho!

terça-feira, 29 de julho de 2014

Condenar e perdoar




Imagem: Reprodução

Errei? Sim. Arrependi? Sim. Aprendi? Sim. Fui perdoado? Sim. Então acabou, é como se não houvesse ocorrido tal fato. Simples e óbvio, mas não prático. Observo, convivo e lamento por pessoas apegadas ao passado de tal forma a remoer fatos ruins em suas vidas, coisas tais que já disseram ter perdoado. As cicatrizes sempre estarão lá. Nada há de mudar o que aconteceu. Aproveitar o que de bom ocorre na vida é uma prova de equilíbrio e serenidade. Remoer por demais o passado é muito triste, pesado e insustentável. O passado tem um grande valor em nossa história, mas não podemos ficar aprisionados a ele. Ficar aprisionado não permitirá vislumbrar um futuro agradável e diferente. Aí está a importância do perdão. Estava acompanhando uma matéria em que Dorival Caymmi era questionado sobre a felicidade e tristeza. Caymmi disse que não se permitia ficar triste, havia se curado disso muito cedo, como todos nós deveríamos fazer. Quando via a tristeza adiante ‘mudava de rumo’, policiava os sentidos e fazia um arejamento de não se deixar contagiar pelo ruim. Uma grande lição. Um fato perdoado tem que ser esquecido, esse é o segredo. Esquecer! Trabalho árduo para os que têm boa memória. Assumir, aprender, ser perdoado e esquecer o erro, nem mesmo mencionar sobre o assunto. Eis a redenção! Essa é a técnica para se viver com bom humor. Se um determinado fato foi resolvido, perdoado, estamos prontos para passar à próxima fase do ‘joguinho’. Pois se apegar ao passado é manter-se inerte. Nessa situação, como são privilegiados os que têm memória falha! Perdoar, muitas vezes é condenar quando não feito da forma certa. Perdoar não é para os fracos de coração. Aprendi um dia desses!

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Conversa à toa sobre o começo, o meio e o fim do amor

Elena Romanova



É certo que o amor começa quase sempre pelo mesmo mecanismo perfeito, preciso, inexplicável que organiza o reencontro inesperado de dois velhos conhecidos numa cidade com seis milhões de habitantes. Do nada. Nasce com a impertinência de uma espinha no rosto da debutante, da noiva ansiosa, da madrinha solteira. No descabimento de um espirro durante o orgasmo, o amor também dá o ar de sua graça. Surge como visita inesperada, resfriado, bolada na praia, multa de trânsito, mamangava, maria-fedida, vagalume, conjuntivite, cabelo branco em adolescente, flor no asfalto, passarinho em escritório.
Sem aviso, o amor rompe a membrana tênue que separa as coisas elevadas, impossíveis, da vida corriqueira e seus acontecimentos rasteiros. Dá as caras à toa, sem mais, como alguém que vai ao mercado, o despertador que não toca, a moça que acorda com raiva, o pobre que acerta na loteria, o tombo da patinadora. Porque o amor pertence à insuspeitada categoria das coisas imprevisíveis. O amor vive no terreno do imponderável. É ali que ele respira, ali ele espera, invisível, seu tempo fortuito e incalculável de vir a ser.
Ah… o amor que adora despertar no desencontro absoluto e na coincidência escandalosa dos números inacreditáveis, na história improvável da moça que passa sete anos sozinha e, dois meses depois de engatar um namoro assim-assim, encontra um moço que viveu os mesmos sete anos casado e há dois meses — os mesmos e inacreditáveis dois meses — encerrou mais uma entre tantas tentativas de amar e ser amado. É, o amor também principia em desarranjo e escárnio divino.
Então, uma vez iniciado, o amor vive sua maior peleja: o meio. Porque difícil não é o começo e nem o fim do amor. É o meio, o que existe entre um e outro lado da história, entre a capa e a contracapa, a frente e o verso. O morno que um dia foi água pelando e no outro será gelo e indiferença. A segunda, terça, quarta e quinta feiras de todo amor.
Quando chega ao meio é que o amor se põe à prova. E só sobrevive a esse terreno esburacado e enganoso o amor dos amantes operários. O amor trabalhador. Porque é de subidas dolorosas, descidas traiçoeiras e retas sonolentas que se compõe esse meio-caminho.
Quem aprende a ficar e se manter de pé, a cair e levantar nesse território impreciso vive o amor em sua face mais primorosa. O amor parceiro de quem se sabe disposto a caminhar rumo ao inferno para estar ao lado do outro, ou na frente, ou atrás. Porque só quem sobrevive às trevas há de entrar no paraíso.
No meio do amor, é preciso perder o medo de se arrebentar inteiro no campo minado do dia a dia. Ali, os casais caminham com cuidado para não pisar em nenhuma mina, ora sabendo, ora não, que se um o fizer os dois serão atingidos na explosão, tão perto estão um do outro.
A quem supera essa fase é reservado um regalo sublime, bônus do exercício maravilhoso de amar: as lembranças. Vagas e adocicadas lembranças de longas conversas tarde da noite, ouvindo a cidade dormir lá fora. As memórias de viagens e festas, sábados de cinema, domingos de churrasco, segundas a sextas de trabalho, planos e sonhos. As reminiscências, tão sublimes quanto os instantes que as originaram. Afinal, seja qual for o tamanho do meio, um dia o amor chega ao fim.
Nesse dia, a decência dos amantes é medida pelo tamanho de seu desprendimento e de sua capacidade de engolir o pranto e dizer “adeus, seja feliz”. Porque só merece as dores e as delícias do amor aquele que um dia saiba deixar o outro ir em frente. E que aprenda a estar só novamente e a guardar a dor consigo até a dor passar, como as antigas personagens de desenho animado que engolem bananas de dinamite acesas.
No amor, que também ama a lógica, depois do começo e do meio vem o fim. Tempo em que ele se arrasta entre migalhas, restos e sobras. Como o guaraná que perde o gás, a cerveja que esquenta, a goiaba que passa do tempo e deixa a casa inteira com cheiro de quintal, é certo que o amor também acaba como começou. Do nada. Em nada, como uma estranha sombra pálida e triste, sinal agudo de que seu tempo já foi e de que é hora de seguir em frente para, tomara Deus seja logo, começar tudo de novo e de novo outra vez.


Fonte: Revista Bula

domingo, 27 de julho de 2014

Terreno perigoso




Imagem: Reprodução

Quando Lígia e Ricardo se falaram foi amor a primeiro clique. Isso mesmo! É cada dia mais comum em nossos tempos esse perigoso ‘pré-relacionamento’ virtual. Os dois se apresentaram frágeis, apaixonados pelas mesmas coisas, parecia tudo combinado. As mensagens enviadas tinham uma certa ambiguidade e interesse oculto. Na verdade, os dois estavam carentes, outro sentimento cada vez mais comum entre nossos contemporâneos. Daí começaram a trocar juras de amor. Terreno perigoso esse tal coração, principalmente quando está desesperado. Ao se falarem, mesmo à distância, o mundo parava, estavam longe de tudo, viviam uma ilusão. Algo dizia aos dois que não daria certo, não era apenas insegurança. Sua história não daria certo. Essa frase ecoava em suas mentes. Mas havia, como ainda há, uma conectividade impressionante entre eles. Seria uma bela história. E fica a pergunta: quantas histórias nunca se concretizaram, mesmo na proximidade? Muitas! São muitos os enlaces que moram na subjetividade e nas promessas não cumpridas. Lígia e Ricardo prometeram um dia abandonar tudo e começar uma vida nova em outro lugar, mas nunca tiveram coragem. Um pensa no outro todos os dias. Ficam admirando a foto do outro, pensando em como seria se tivessem seguido seus planos audaciosos. Quantos planos deixamos pelo caminho, não é mesmo? Muitos! Mais do que deveríamos. E a sensação de vazio os invade. Horrível! Aliás, com que constância sente um vazio? É! Você mesmo, Caro Leitor! Esse sentimento também é muito perigoso. Cuidado! Mas o vazio desse casal se dá porque se amam e tem medo do que a realidade pode os apresentar e o receio da recíproca de seu amor não ser verdadeira. Mais que isso, medo de terem idealizado alguém que não existe. Um sério risco. Afinal, cometemos esse erro com quem convivemos diariamente, imagina com uma pessoa que nunca esteve em sua presença?! E quem conhece a história deles se divide em duas opiniões. Ou pensam que tudo não passa de uma grande bobagem ou que eles têm medo do amor. Mas vai muito além disso, eles temem a mudança que a concretização desse amor pode causar em suas vidas.

sábado, 26 de julho de 2014

O humor como expressão de saúde psíquica e espiritual

Leonardo Boff

Por Leonardo Boff
 
 
 
   Todos os seres vivos superiores possuem acentuado sentido lúdico. Basta observa os gatinhos e cachorros de nossas casas. Mas o humor é próprio só dos seres humanos. O humor nunca foi considerado tema “sério” pela reflexão teológica, sabendo-se que ele se encontra presente em todas as pessoas santas e místicas que são os únicos cristãos verdadeiramente sérios. Na filosofia e na pscinálise teve melhor sorte.
   Humor não é sinônimo de chiste, pois pode haver chiste sem humor e e humor sem chiste. O chiste é irrepetível. Repetido, perde a graça. A historieta cheia de humor conserva sua permanente graça; e gostamos de ouvi-la repetidas vezes.
   O humor só pode ser entendido a partir da profundidade do ser humano. Sua característica é ser um projeto infinito, portador de inesgotáveis desejos, utopias, sonhos e fantasias. Tal dado existencial faz com que haja sempre um descompasso entre o desejo e a realidade, entre o sonhado e sua concretização. Nenhuma instituição, religião, Estado e lei conseguem enquadrar totalmente o ser humano, embora existam exatamente para enquadrá-lo a um certo tipo de ordem. Mas ele desborda estas determinações. Dai a importância da violação do inerdito para a vivência da liberdade e para que surjam coisas novas. Isso na arte, na literatura e também na religião.
   Quando se dá conta desta diferença entre a lei e a realidade – veja-se por exemplo, a exdrúxula moral católica sobre a proibição do uso da camisinha em tempos em que grassa a AIDs – surge o sentido do humor. Dá vontade de rir, pois é tudo tão fora do bom senso, é tanto discurso proferido em pleno deserto que ninguém escuta nem observa que só podemos ter humor. Essas pessoas vivem na lua não na Terra.
   No humor se vive o sentimento de alívio do peso das limitações e do prazer de vê-las relativas e sem a importância que elas mesmas se dão. Por um momento, a pessoa se sente livre dos super-egos castradores, das injunções impostas pela situação e faz uma experiência de liberdade, como forma de plasmar seu tempo, dar sentido ao que está fazendo e construir algo novo. Por detrás do humor vigora a criatividade, própria do ser humano. Por mais que haja constrangimentos naturais e sociais, sempre há espaço para se criar algo novo. Se não fosse assim não haveria gênios na ciência, na arte e no pensamento. Inicialmente são tidos por “loucos”, excêntricos e anormais. Quando tudo passou, um novo olhar descobre a genialidade de um van Gogh, a criatividade fantástica de Bach, quase desapercebido no seu tempo. De Jesus se diz que “os seus saíram para agarrá-lo, pois diziam “ele está louco” (Mc 3,21). De São Francisco se disse a mesma coisa: ele é um “pazzus” um louco, coisa que ele aceitava como expressão da vontade de Deus. E era uma santo cheio de de humor e alegria a ponto de o chamaram”frade-sempre-alegre”.
   Em palavras mais pedestres: o humor é sinal de que nos é impossível definir o ser humano dentro de um quadro estabelecido. Em seu ser mais profundo e verdadeiro é um criador e um livre.
Por isso, pode sorrir e ter humor sobre os sistemas que o querem aprisionar em categorias estabelecidas. E o ridículo que constatamos em senhores sérios (por exemplo, professores, juízes, diretores de escola e até monsenhores) que querem, solenemente e com ares de uma autoridade superior, quase divina, fazer dos outros cegos e submissos ou quais ovelhas terem que  obedecer às suas ordens. Isso também causa humor.
   Acertado estava aquele filósofo (Th. Lersch Philosophie des Humors, Munique 1953, 26) que escreveu: “A essência secreta do humor reside na força da atitude religiosa. Pois o humor vê as coisas humanas e divinas na sua insuficiência diante de Deus”. A partir da seriedade de Deus, o ser humano sorri das seriedades humanas com a pretensão de serem absolutamente verdadeiras e sérias. Elas são um nada diante de Deus. E existe ainda toda uma tradição teológica que nos vem dos Padres da Igreja Ortodoxa que falam do Deus ludens, (do Deus lúdico) pois criou o mundo como um jogo para o seu próprio entretenimento. E o fazia, sabiamente, unindo humor com seriedade.
   Quem vive centrado em Deus tem motivos de cultivar o humor. Relativiza as seriedades terrenas, até os próprios defeitos e é um livre de preocupações. São Thomas Morus, condenado à guilhotina, cultivou o humor até o fim: pedia aos algozes que lhe cortassem o pescoço mas lhe poupassem a longa barba branca. São Lourenço sorria com humor dos algozes que o assavam na grelha e os incitava a virá-lo do outro lado porque de um lado estava vem cozido ou do Santo Inácio de Antioquia, bispo, ancião e referência de toda a Igreja dos primórdios, que suplicava aos leões que viessem devorá-lo para passar mais rapidamente à felicidade eterna.
   Conservar esta serenidade, viver em estado de humor e compreende-lo a partir das insuficiências humanas é uma graça que todos devemos buscar e pedir a Deus.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

O tempo e as jabuticabas

Imagem: Reprodução

Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para frente do que já vivi até agora. Sinto-me como aquela menina que ganhou uma bacia de jabuticabas. As primeiras, ela chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades. Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados. Não tolero gabolices. Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte. Já não tenho tempo para projetos megalomaníacos.
Não participarei de conferências que estabelecem prazos fixos para reverter a miséria do mundo. Não quero que me convidem para eventos de um fim de semana com a proposta de abalar o milênio. Já não tenho tempo para reuniões intermináveis para discutir estatutos, normas, procedimentos e regimentos internos. Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos. Não quero ver os ponteiros do relógio avançando em reuniões de 'confrontação', onde 'tiramos fatos a limpo'.
Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário geral do coral.Lembrei-me agora de Mário de Andrade que afirmou: 'as pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos'. Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa...
Sem muitas jabuticabas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade, defende a dignidade dos marginalizados,  e deseja tão somente andar ao lado do que é justo. Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade, desfrutar desse amor absolutamente sem fraudes, nunca será perda de tempo.' O essencial faz a vida valer a pena.

Rubem Alves

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Intimidade interior




12
Fotografia: Majnari Sharma

Dentre as muitas coisas agradáveis da vida está o banho, de chuva ou chuveiro. São agradáveis, necessários, revelam nossa face humana. É aquele momento íntimo, em que os pensamentos se desnudam. Oportunidade de descarga emocional, descarga de ansiedade, relaxamento. Muitas coisas se passem por nossa mente enquanto nos banhamos. A água é uma substância interessante, capaz de milagres. Cada gota parece um mar, um mar onde nossas ideias navegam profundamente. O vapor da água quente tem um significado único. Para uns a prova de que todo pensamento desinteressante se perde no ar. Já outros veem poesia exalar.  Ai o banhar-se! Banhar revela nossas profundezas, expõe medos, angústias, ansiedades. Ou nossa serenidade. Nesse momento somos nós conosco mesmo. Se no momento da morte passa-se um filme de toda a vida diante dos nossos olhos, durante um banho visualizamos curtas metragens, ou trailers de nossa existência. Nesse momento é só nossa dor, alegria, desejo, amores roubados, amores perdidos, amores conquistados, vitórias, perdas, guerra, paz. Somos nós, apenas nós. Sem diplomas, razões, certezas, mas muitas filosofias. Temos apenas imagens, uma seguida de outra, sem necessidade de ordem lógica, ou cronológica. É nessa hora que as coisas acontecem como realmente desejamos, ou não. É no banho que o talento negado de cantor surge. Cantores natos, talentosos, vibrantes. E vem o ‘insight’. ‘Como não?! Agora tudo se explica. Uma coisa está ligada a outra. Foi por isso que...’ Quantas vezes não repetimos essas palavras ou expressões similares? Mas é hora de pensar na sustentabilidade e desligar o chuveiro. Estamos ‘puros’, recarregados, limpos, serenos. Prontos para tudo, quer dizer, quase tudo. Nem sempre estamos preparados para muitas coisas. Quem sabe no próximo banho!

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Escorpiões disfarçados de siris



Fabricio Carpinejar

Imagem: Reprodução


Raros são os que guardam segredos. Raros e invioláveis.

A maior parte dos amigos revela nossos segredos não por maldade, e sim por incompetência, absoluta inabilidade para a discrição e o respeito.

Nem são fofoqueiros, é que não conseguem conservar uma promessa e contam nossos segredos em forma de segredos para seus amigos guardarem segredo. Vão passando o segredo adiante, jurando que os demais serão capazes de sigilo (se nem eles que são próximos da fonte cumpriram a palavra, o que dirão aqueles que são distantes, sem nenhum compromisso?). E muitos partilham com a esposa ou o marido, alegando que são a mesma pessoa e que não tem como esconder nada dentro do casamento. Não absorveram a lição básica de que segredo é prato individual, não é porção para dois.

Tudo bem, já perdoei essas figuras, esses escorpiões disfarçados de siris, esses conselheiros com complexo de agência de notícia.

São confiáveis, mas fracos.

São leais, mas carentes.

São honestos, mas burros.

São bem-intencionados, mas influenciáveis.

É necessário inteligência para se esquivar da curiosidade alheia, suportar a pressão, rechaçar perguntas, não entregar o assunto com insinuações, ambiguidades e caretas.

O segredo é a prova de QI da Amizade.

O confidente deve amar seu temperamento, não ser preconceituoso, careta e teimoso, e protegê-lo nas mais diferentes combinações sociais.

Tenho amigos maravilhosos, divertidos, carismáticos, só que não posso abrir nenhuma confidência para eles, já percebi que vacilam e sofrem de incontinência verbal. E jamais assumem a gravidade de dar com a língua nos dentes. Arrumam desculpas para romper o pacto de silêncio. Ainda se acham certos.

Divido os falastrões em três categorias:

Falso generoso: usa o pretexto de que estava preocupado com você e não poderia conter a informação.

Inconsequente: limitado, não calcula os desdobramentos de seus atos, não compreende que segredo não é segredo por charme, é porque ainda não se está maduro para revelá-lo a todos, há grandes chances de estragar ou interferir na realidade.

Moralista: emprega o artifício de que abriu a boca porque não sabe mentir. Além de jogar no ventilador sua intimidade, ainda – por tabela – atingirá sua honra e lhe acusará de mentiroso.

Depois de muito penar, vejo que manter segredo é uma vocação sublime.

Escolher um confidente é tão difícil quanto encontrar o verdadeiro amor. Será um por vida, não mais que um.

Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 15/7/2014
Porto Alegre (RS), Edição N° 17860

terça-feira, 22 de julho de 2014

Geração "só a cabecinha"


por Bia Granja*
 (Foto: Nik Neves/ Editora Globo)
  Outro dia vi um estudo que diz que 25% das músicas do Spotify são puladas após 5 segundos. E que metade dos usuários avança a música antes do seu final. Enquanto isso, no YouTube, a média de tempo assistindo a vídeos não passa dos 90 segundos. O mais chocante desses dois dados é que o uso do Spotify e do YouTube, em geral, está focado no lazer, no entretenimento. Ou seja, se a gente não tem paciência para ficar mais de 90 segundos focado em uma atividade que nos dá prazer, o que acontece com o resto das coisas?

  Você ficou sabendo da entrada do ator Selton Mello no seriado Game Of Thrones? Saiu em vários grandes portais brasileiros e a galera na internet compartilhou loucamente a notícia. Tudo muito bacana, não fosse a notícia um hoax, um boato inventado por um empresário brasileiro apenas pra zoar e ver até onde a história poderia chegar. Bem, ela foi longe: mais de 500 tuítes com o link, mais de 3 mil compartilhamentos no Facebook, mais de 13 mil curtidas, matéria no UOL, Ego, Bandeirantes, O Dia e vários outros sites.

  Quem não tem paciência de ouvir cinco segundos de uma música tem menos paciência ainda pra ler uma notícia inteira. Pesquisas já mostraram que a maioria das pessoas compartilha reportagens sem ler. Viramos a Geração “só a cabecinha”, um amontoado de pessoas que vivem com pressa, ansiosas demais pra se aprofundar nas coisas. Somos a geração que lê o título, comenta sobre ele, compartilha, mas não vai até o fim do texto. Não precisa, ninguém lê!
 
 
                                                                 "SOMOS A GERAÇÃO QUE LÊ O TÍTULO, COMENTA SOBRE ELE, COMPARTILHA, MAS NÃO VAI ATÉ O FIM DO TEXTO. NÃO PRECISA, NINGUÉM LÊ!"
 
 
   Nunca achei que a internet alienasse as pessoas ou nos deixasse mais burros, pois sei que a web é o que fazemos dela. Ela é sempre um reflexo do nosso eu, para o bem e para o mal. Mas é verdade que as redes sociais causaram, sim, um efeito esquisito nas pessoas. A timeline corre 24 horas por dia, 7 dias da semana e é veloz. Daí que muita gente acaba reagindo aos conteúdos com a mesma rapidez com que eles chegam. Nas redes sociais, um link dura em média 3 horas. Esse é o tempo entre ser divulgado, espalhar-se e morrer completamente. Se for uma notícia, o ciclo de vida é ainda menor: 5 minutos. CINCO MINUTOS! Não podemos nos dar ao luxo de ficar de fora do assunto do momento, certo? Então é melhor emitir logo qualquer opinião ou dar aquele compartilhar maroto só pra mostrar que estamos por dentro. Não precisa aprofundar, daqui a pouco vem outro assunto mesmo.

  Por outro lado... quem lê tanta notícia? Se Caetano Veloso já achava que tinha muita notícia nos anos 1960, o que dizer de hoje? Ao mesmo tempo em que essa atitude é condenável, também é totalmente compreensível. Todo mundo é criador de conteúdo, queremos acompanhar tudo, mas não conseguimos. Resta-nos apenas respirar fundo, tentar manter a calma e absorver a maior quantidade de informação que pudermos sem clicar em nada. Será que conseguimos?
 

* Co-criadora e curadora do youPIX e da Campus Party Brasil. Seu trabalho busca entender como os jovens brasileiros usam a rede para se expressar e criar movimentos culturais.

Fonte: Galileu