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domingo, 17 de agosto de 2014

Sobre a rosa e a recusa



Um negro e uma negra
que perderam o parafuso
resolveram se amar
para perpetuar a raça,
mas só tinham a carne e o corpo
e o ar que era de graça.
Ah! Um negro e uma raça
resolveram apertar os parafusos
para não caírem em desgraça ...
ainda bem, ainda bem
que uma negra e sua carne
guardaram todo o ar
para respirar
sem afrouxar os parafusos
... porque o negro
... porque o negro
... o negro foi embora.

sábado, 9 de agosto de 2014

Entrevista sobre o feio



Fonte: Estadão
Imagem: Reprodução


Conversa com Paulinha Inhotim. Uma mulher linda – que só namora com feios.


Maria Paula é linda de marré, marré, marré. Por isso recebeu o apelido de Paulinha Inhotim. Sim, ela é mais bonita que o parque mineiro. Loura, um sorriso de 88 teclas, praticante assídua de Pilates, Ioga, Caratê e Dança do Ventre. Quando ela sorri, Deus toca “Love is a Many-Splendored Thing”. E jornalista, escreve melhor que Susan Sontag. Ou seja: se houvesse mesmo uma política séria de controle de armas no Brasil, ela teria que andar com porte de Paulinha na bolsa.

Então Paulinha Inhotim é linda. E só namora com feio. Ela mesmo faz questão de divulgar, com orgulho: o rosto do meu namorado atual parece Marte. Um dia, Paulinha Inhotim estava dando sopa no bar, eu sentei do lado dela – credenciado pelo fato dela conversar com feios. Quis entender a preferência.

Primeiro, acho importante definir o “feio”. Há montes e montes de pensadores que discutiram o assunto. Platão passou a vida tentando precisar o belo, pra em oposição saber o que é feio. Aristóteles foi outro. Nietzsche achava que o feio era o declínio do bonito, portanto todos seremos medonhos na hora da morte. Pra Marx, não existia o feio – porque se o sujeito tem dinheiro, ele fica lindo. Umberto Eco resolveu razoavelmente bem: se o belo é o consagrado, o aceito por todos, então o feio é aquilo que todo mundo desaprova. Aí, pronto. Se tem a ver com aprovação, com o botão curtir do Facebook, eu consigo me defender numa conversa.

Então sentei do lado da Paulinha. Puxei logo o assunto. Ela me tratou com atenção. Ficou orgulhosa quando eu disse que o namorado dela é feio. Não levou como ofensa, pelo contrário. E me explicou o que os feios têm.

Pra começar, o homem bonito só fala dele. Está tão acostumado ao aplauso geral que acha que é sempre o principal assunto do mundo. O feio, não. O feio parte da crítica negativa, escuta – e aí se vira pra inverter a situação.

O feio se reinventa, muda o jogo. Quem cresce acostumado com a rejeição não pára na primeira recusa. E, ao insistir, dá valor à mulher. Mas como insistir pode ser um troço chato, o feio se prepara. Estuda pra pensar uma tática sedutora. A moça gosta de poema? O feio decora Drummond (enquanto o bonito se acha a própria poesia).

O mal-diagramado investe em outras atividades, diversifica para distrair a atenção do rosto. Ésopo, o das histórias, era mais feio que a fome. Alguém lembra que ele era caolho, corcunda e provavelmente corinthiano (porque grego)? Não: as pessoas só falam da “A Cigarra e a Formiga”. Logo, hoje, Ésopo é lindo como uma fábula. A vida o absolveu.

Mas o principal do feio, segundo Paulinha Inhotim, é a coragem. A maioria dos homens não tem a bravura necessária para conversar com ela. O atual namorado da Paulinha não só puxou papo, como também convidou pra sair e – suprema macheza – deu o bote.  Confiança, desde que não vire soberba, agrada. A mulher se sente protegida, a esposa de um lutador de MMA.  E a fama que o feio traz ? Paulinha entra com o namorado num restaurante e todo mundo olha pra ela, perguntando com os olhos: o que este cara tem ? E as hipóteses vão da inteligência superior à centrimetragem heroica.

O feio é vira-lata: se defende nas ruas. Se precisar, revira o lixo para alimentar a amada. Quer nobreza maior que essa ? – perguntava Paulinha, segura e bem nutrida, antes de pedir mais um drinque.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Conversa à toa sobre o começo, o meio e o fim do amor

Elena Romanova



É certo que o amor começa quase sempre pelo mesmo mecanismo perfeito, preciso, inexplicável que organiza o reencontro inesperado de dois velhos conhecidos numa cidade com seis milhões de habitantes. Do nada. Nasce com a impertinência de uma espinha no rosto da debutante, da noiva ansiosa, da madrinha solteira. No descabimento de um espirro durante o orgasmo, o amor também dá o ar de sua graça. Surge como visita inesperada, resfriado, bolada na praia, multa de trânsito, mamangava, maria-fedida, vagalume, conjuntivite, cabelo branco em adolescente, flor no asfalto, passarinho em escritório.
Sem aviso, o amor rompe a membrana tênue que separa as coisas elevadas, impossíveis, da vida corriqueira e seus acontecimentos rasteiros. Dá as caras à toa, sem mais, como alguém que vai ao mercado, o despertador que não toca, a moça que acorda com raiva, o pobre que acerta na loteria, o tombo da patinadora. Porque o amor pertence à insuspeitada categoria das coisas imprevisíveis. O amor vive no terreno do imponderável. É ali que ele respira, ali ele espera, invisível, seu tempo fortuito e incalculável de vir a ser.
Ah… o amor que adora despertar no desencontro absoluto e na coincidência escandalosa dos números inacreditáveis, na história improvável da moça que passa sete anos sozinha e, dois meses depois de engatar um namoro assim-assim, encontra um moço que viveu os mesmos sete anos casado e há dois meses — os mesmos e inacreditáveis dois meses — encerrou mais uma entre tantas tentativas de amar e ser amado. É, o amor também principia em desarranjo e escárnio divino.
Então, uma vez iniciado, o amor vive sua maior peleja: o meio. Porque difícil não é o começo e nem o fim do amor. É o meio, o que existe entre um e outro lado da história, entre a capa e a contracapa, a frente e o verso. O morno que um dia foi água pelando e no outro será gelo e indiferença. A segunda, terça, quarta e quinta feiras de todo amor.
Quando chega ao meio é que o amor se põe à prova. E só sobrevive a esse terreno esburacado e enganoso o amor dos amantes operários. O amor trabalhador. Porque é de subidas dolorosas, descidas traiçoeiras e retas sonolentas que se compõe esse meio-caminho.
Quem aprende a ficar e se manter de pé, a cair e levantar nesse território impreciso vive o amor em sua face mais primorosa. O amor parceiro de quem se sabe disposto a caminhar rumo ao inferno para estar ao lado do outro, ou na frente, ou atrás. Porque só quem sobrevive às trevas há de entrar no paraíso.
No meio do amor, é preciso perder o medo de se arrebentar inteiro no campo minado do dia a dia. Ali, os casais caminham com cuidado para não pisar em nenhuma mina, ora sabendo, ora não, que se um o fizer os dois serão atingidos na explosão, tão perto estão um do outro.
A quem supera essa fase é reservado um regalo sublime, bônus do exercício maravilhoso de amar: as lembranças. Vagas e adocicadas lembranças de longas conversas tarde da noite, ouvindo a cidade dormir lá fora. As memórias de viagens e festas, sábados de cinema, domingos de churrasco, segundas a sextas de trabalho, planos e sonhos. As reminiscências, tão sublimes quanto os instantes que as originaram. Afinal, seja qual for o tamanho do meio, um dia o amor chega ao fim.
Nesse dia, a decência dos amantes é medida pelo tamanho de seu desprendimento e de sua capacidade de engolir o pranto e dizer “adeus, seja feliz”. Porque só merece as dores e as delícias do amor aquele que um dia saiba deixar o outro ir em frente. E que aprenda a estar só novamente e a guardar a dor consigo até a dor passar, como as antigas personagens de desenho animado que engolem bananas de dinamite acesas.
No amor, que também ama a lógica, depois do começo e do meio vem o fim. Tempo em que ele se arrasta entre migalhas, restos e sobras. Como o guaraná que perde o gás, a cerveja que esquenta, a goiaba que passa do tempo e deixa a casa inteira com cheiro de quintal, é certo que o amor também acaba como começou. Do nada. Em nada, como uma estranha sombra pálida e triste, sinal agudo de que seu tempo já foi e de que é hora de seguir em frente para, tomara Deus seja logo, começar tudo de novo e de novo outra vez.


Fonte: Revista Bula