por: Luísa Alves
“O espermatozoide penetra no óvulo, ocorrendo a fecundação.”

Legenda original: “Fecundação do óvulo por um espermatozoide”. Fonte: http://tele-fe.com
Frases semelhantes a essa são
frequentemente encontradas em livros didáticos, sites na internet ou até
mesmo em artigos científicos. E o que tem de errado nelas? Ora, é a
ciência que diz ser assim, então deve ser, não? Bom… não
necessariamente. Cientistas são pessoas, seres humanos, Homo sapiens
e, como tais, possuem cultura, possuem contexto. Essa cultura
influencia a forma de cada um ver o mundo e, portanto, de fazer ciência.
Seguindo essa linha, os resultados das pesquisas científicas não são
fatos verdadeiros e universais, mas sim interpretações que os cientistas
fazem do mundo: elas dependem dos métodos de pesquisa utilizados, do
contexto em que a pesquisa é feita, da história de vida dos cientistas,
dos interesses da sociedade na pesquisa e por aí segue a enorme lista de
influências. Pra exemplificar essa parcialidade da ciência, trago o tal
exemplo da fecundação: “o espermatozoide penetra no óvulo”. Qualquer
semelhança com “o pênis penetra na vagina” não é mera coincidência. Mais
ainda, qualquer semelhança com os papeis sociais de
homem-ativo-dominante e mulher-passiva-dominada não é absolutamente
coincidência alguma.
Os óvulos são comumente descritos
como passivos, imóveis. Os espermatozoides, por sua vez, costumam ser
caracterizados como ativos e rápidos. Assim, cabe ao óvulo esperar a
chegada e entrada dos espermetazoides, e estes sim realizam uma longa
jornada, cheia de obstáculos a superar. Você pode ficar surpreso(a) em
saber que estudos científicos mostraram que a força do flagelo (aquela
cauda do espermatozoide, que permite que ele “nade”) não apenas é fraca
demais para ajudá-lo a “penetrar” no óvulo, como move o espermatozoide
mais significativamente para os lados, não para frente. Isso faz com que
a tendência dos espermatozoides seja, não de entrar no óvulo, e sim de
se afastar dele. Como ocorre a fecundação, então? Alguns cientistas
descobriram que as superfícies do óvulo e do espermatozoiude “grudam”
uma na outra, impedindo que eles se afastem. Outros cientistas
observaram, ainda, que os óvulos emitem finos “braços” de membrana
(chamados microvilosidades) que envolvem os espermatozoides e os
transportam para dentro dos óvulos. Ou seja, o espermatozoide, longe de
penetrar ativamente no óvulo, é mais precisamente “puxado” pra dentro, o
que torna a fecundação um processo com participação das duas partes
envolvidas: feminina e masculina, numa interação mútua. E se você
estiver pensando que nunca ouviu falar disso porque são estudos
recentes, bom… eles são das décadas de 1970 e 1980.
Mas se o óvulo não é lá tãão passivo
assim, porque ele continua sendo representado dessa maneira por todos os
lados? Talvez porque, na nossa cultura, seja realmente muito difícil
aceitarmos que feminino nem sempre significa passivo, e que essa é
apenas uma construção social; que mulheres não são naturalmente passivas
e homens naturalmente ativos, mas que nós somos criados desde pequenos
para nos enquadrarmos nesses padrões de “feminino” e “masculino”, de
forma que eles acabam virando “verdades”.
Esse foi apenas um dentre tantos
exemplos de como os conhecimentos científicos não são neutros, mas sim
estão permeados de relações sociais e de poder, de estereótipos,
culturas, contextos e parcialidades. Por isso, vamos olhá-los com mais
cuidado, tentando perceber as visões que eles expressam, para além
daquilo que é “biológico”, “físico” ou seja lá qual for o campo de
estudo. A ciência é uma atividade social, e por isso é sempre
influenciada pelas relações sociais dos sujeitos que a produzem. Afinal,
“A teoria do corpo humano é sempre uma parte de uma visão de mundo.…A teoria do corpo humano é sempre uma parte de uma fantasia.” [James Hillmam, O mito da Análise].
Texto baseado em uma parte do artigo “The egg and the sperm: how science has constructed a romance based on stereotypical male-female roles”, de Emily Martin, 1991.
Fonte: Blog PECEP
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