sexta-feira, 2 de maio de 2014

Sobre verdades e óvulos


por: Luísa Alves

“O espermatozoide penetra no óvulo, ocorrendo a fecundação.”

fecundaçao
Legenda original: “Fecundação do óvulo por um espermatozoide”. Fonte: http://tele-fe.com

Frases semelhantes a essa são frequentemente encontradas em livros didáticos, sites na internet ou até mesmo em artigos científicos. E o que tem de errado nelas? Ora, é a ciência que diz ser assim, então deve ser, não? Bom… não necessariamente. Cientistas são pessoas, seres humanos, Homo sapiens e, como tais, possuem cultura, possuem contexto. Essa cultura influencia a forma de cada um ver o mundo e, portanto, de fazer ciência. Seguindo essa linha, os resultados das pesquisas científicas não são fatos verdadeiros e universais, mas sim interpretações que os cientistas fazem do mundo: elas dependem dos métodos de pesquisa utilizados, do contexto em que a pesquisa é feita, da história de vida dos cientistas, dos interesses da sociedade na pesquisa e por aí segue a enorme lista de influências. Pra exemplificar essa parcialidade da ciência, trago o tal exemplo da fecundação: “o espermatozoide penetra no óvulo”. Qualquer semelhança com “o pênis penetra na vagina” não é mera coincidência. Mais ainda, qualquer semelhança com os papeis sociais de homem-ativo-dominante e mulher-passiva-dominada não é absolutamente coincidência alguma.
Os óvulos são comumente descritos como passivos, imóveis. Os espermatozoides, por sua vez, costumam ser caracterizados como ativos e rápidos. Assim, cabe ao óvulo esperar a chegada e entrada dos espermetazoides, e estes sim realizam uma longa jornada, cheia de obstáculos a superar. Você pode ficar surpreso(a) em saber que estudos científicos mostraram que a força do flagelo (aquela cauda do espermatozoide, que permite que ele “nade”) não apenas é fraca demais para ajudá-lo a “penetrar” no óvulo, como move o espermatozoide mais significativamente para os lados, não para frente. Isso faz com que a tendência dos espermatozoides seja, não de entrar no óvulo, e sim de se afastar dele. Como ocorre a fecundação, então? Alguns cientistas descobriram que as superfícies do óvulo e do espermatozoiude “grudam” uma na outra, impedindo que eles se afastem. Outros cientistas observaram, ainda, que os óvulos emitem finos “braços” de membrana (chamados microvilosidades) que envolvem os espermatozoides e os transportam para dentro dos óvulos. Ou seja, o espermatozoide, longe de penetrar ativamente no óvulo, é mais precisamente “puxado” pra dentro, o que torna a fecundação um processo com participação das duas partes envolvidas: feminina e masculina, numa interação mútua. E se você estiver pensando que nunca ouviu falar disso porque são estudos recentes, bom… eles são das décadas de 1970 e 1980.
Mas se o óvulo não é lá tãão passivo assim, porque ele continua sendo representado dessa maneira por todos os lados? Talvez porque, na nossa cultura, seja realmente muito difícil aceitarmos que feminino nem sempre significa passivo, e que essa é apenas uma construção social; que mulheres não são naturalmente passivas e homens naturalmente ativos, mas que nós somos criados desde pequenos para nos enquadrarmos nesses padrões de “feminino” e “masculino”, de forma que eles acabam virando “verdades”.
Esse foi apenas um dentre tantos exemplos de como os conhecimentos científicos não são neutros, mas sim estão permeados de relações sociais e de poder, de estereótipos, culturas, contextos e parcialidades. Por isso, vamos olhá-los com mais cuidado, tentando perceber as visões que eles expressam, para além daquilo que é “biológico”, “físico” ou seja lá qual for o campo de estudo. A ciência é uma atividade social, e por isso é sempre influenciada pelas relações sociais dos sujeitos que a produzem. Afinal,
A teoria do corpo humano é sempre uma parte de uma visão de mundo.…A teoria do corpo humano é sempre uma parte de uma fantasia.” [James Hillmam, O mito da Análise].
Texto baseado em uma parte do artigo “The egg and the sperm: how science has constructed a romance based on stereotypical male-female roles”, de Emily Martin, 1991.

 Fonte: Blog PECEP

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