segunda-feira, 23 de julho de 2012

DA ARTE DE AMAR O ESTRANHO QUE PASSA

Miguel Sousa-Aguiar

Corre o sol pelo asfalto, descendo a Rua Augusta, como água na corredeira, jogando luz nos cantos, amarelando tudo, um sol repentino, um sol de buzinas, um sol de rostos anuviados que se abrem num ou outro sorriso ao vez a luz chegar. Corre a menina de negro, os cabelos vermelhos, os olhos pintados, uma dezena de brincos no nariz, como uma jovem de alguma distante tribo africana. Ela passa por mim olhando fixamente para a frente, como se perseguisse uma presa, os olhos escondidos atrás da grossa camada de maquiagem. Atrás dela, corre a dona de casa, alguns quilos acima de seu peso, lutando contra um cabelo que teima em lhe cair sobre os olhos, arrastando uma menina de olhar sonhador. Ela esboça um sorriso triste e arrasta a criança rua abaixo, olhando de esguelha para as vitrines cheias de roupas para mulheres magras. E ainda passa correndo o homem de terno escuro e têmporas grisalhas, uma ruga profunda no meio da testa, uma determinação nos passos que chega a assustar.
Eu tomo mais um gole do café- forte, amargo, cheio de lembranças em seu aroma – e observo o grupo de funcionárias do salão, todas de branco, como um bando em revoada, gritos agudos e braços que se agitam ao mesmo tempo, enquanto correm para atravessar a rua movimentada. Mal tocam o pé na calçada e a frota de carros brilhantes toma seu lugar, correndo ladeira acima, enquanto o sol corre no sentido oposto. E corre fumaça, corre criança com fome, correm mulheres ricas com arcos dourados nos cabelos, japonesas, coreanos, judeus ortodoxos de chapéus negros e cachos balançando ao vento.
O café termina e eu continuo sentado, ali, os olhos fixos na rua que ondula com a respiração das gentes que vêm e vão – e eu brinco de lhes adivinhar os sonhos, inventar histórias sobre este ou aquele, perceber um detalhe curioso que vai para o livro das particularidades de ser humano. Esta observação cotidiana faz muito bem. É como um exercício da alma este olhar para a gente a sua frente, ao invés de não enxergar o outro, que é como somos ensinados a nos comportar. Um longo aprendizado este, o da arte de amar o estranho que passa.
O jovem chinês, recém chegado a São Paulo me oferece relógios, cremes, óculos de sol. Salta sobre mim como um tigre faminto, abrindo a mala surrada e produzindo quinquilharias e cosméticos. Vai falando uma mistura de inglês estropiado, português e uma linguagem corporal intensa. Eu acabo comprando um par de óculos e ele despenca ladeira abaixo, feliz como uma criança, sacudindo a cabeça, em agradecimento.
Observo seu corpo e percebo que ele corre de forma graciosa. Há um encanto em sua figura magra, a mala parecendo muito mais leve do que realmente é. Ainda pára na esquina e acena: e o gesto traz uma certa atmosfera chinesa, quase uma estampa: lanternas vermelhas e revelações trazidas pelo ópio, deitado nos fundos de um cabaré, enquanto a garota de cabelos negros e lisos, aquela que tinha uma tatuagem de dragão na base do pescoço, fuma atrás da cortina de contas de cristal.
A arte de amar o estranho que passa.
É quando conseguimos ir além do sexo, além das nossas repulsas, além dos nossos medos. É quando conseguimos olhar além, quando somos capazes de entender a santidade de alguns eleitos, aqueles que foram ungidos e que nos ensinam a difícil arte de viver, na totalidade, cada novo dia que nasce, ainda que ele não lhe traga nenhum grande acontecimento. Amar o movimento da areia que corre por entre o vidro da ampulheta, a serpente emplumada do nosso destino previsível. Amar o gracioso meneio dos cabelos das garotas do elenco, cantando Adeus, Batucada - lenços brancos e despedidas. Sempre despedidas, porque é disso que é feita a nossa existência, não vamos nos iludir. Vivemos a despedida de cada dia, antes mesmo que ele venha à luz.
Mas tudo parece estar no lugar certo, quando o homem canta e celebra, quando Stella corre para Soraya, que estende um olhar para Agnes que, por sua vez, eleva aos céus sua voz rara e com ela vem Germana, Sheila, Isabela, Janaína, Rita, mulheres do Brasil, cantando essas jóias do nosso cancioneiro. Os rapazes, encantados, com as vozes de mães e amantes e companheiras, respondem com o tom grave dos queixumes e a música pousa na alma com uma tal propriedade, que é como um beijo cada nota que chega pelo ar.
Estou amando um punhando de canções. Estou amando um elenco de talento. Estou, talavez por causa de tanta graça recebida, amando o estranho que passa. Começo a engatinhar nesta arte tão pouco difundida, mas com alguns bons praticantes em todos os continentes. Bem mais difícil para nós, corações urbanos marcados com as grifes, rótulos e etiquetas da nossa existência vulgar. Difícil, mas não impossível, eu penso assim.
E, talvez por isso, eu me sente aqui, como alguém em uma margem, olhando o sol que corre pela Rua Augusta, bebendo outra xícara de café, olhando para um par de óculos que eu jamais irei usar, mas que fez um jovem chinês sorrir na manhã de buzinas e carros brilhando. Essa é a idéia da coisa.
A arte de amar o estranho que passa. Ainda que não saibamos ao certo de que modo fazê-lo.

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