À medida que as mulheres passaram a obter vitórias
políticas, conseguindo a igualdade jurídica, a discriminação foi
deslocada para outros campos. E um tema que merece atenção é o da
aparência feminina, pois envolve uma mudança no enfoque do corpo da
mulher na mídia.
Por Cynthia Semíramis
Mulheres ainda são avaliadas primeiro – e principalmente – por sua
aparência, e não por suas atitudes e qualidades. Resquício de uma época
na qual mulher não podia estudar nem trabalhar, a aparência feminina era
fundamental para enfeitar o ambiente e se destacar. Porém, os tempos
mudaram e hoje não faz o menor sentido adotar a aparência física como
critério principal para a avaliação da vida de uma mulher, e de sua
atuação profissional.
Um homem não vai ser considerado menos profissional se for careca,
idoso ou andar como um pato. Caso não use as roupas da moda, será visto
como excêntrico, não como indigno de confiança profissional. Uma mulher
será criticada em toda a sua aparência (peso, roupas, esmalte, batom,
rímel, sombra, cor e corte de cabelo, espessura e formato da
sobrancelha, sapatos, bolsa, brincos, colares e pulseiras) antes de ser
avaliada pelo que tem a dizer. Seu peso e sua aparência são tratados
como assuntos públicos, como se ela estivesse o tempo todo precisando
primeiro ser aprovada como enfeite, e só depois, segundo o ideal de
beleza vigente, pudesse ser avaliada e aprovada como profissional.
Essa desigualdade na abordagem da aparência faz com que as mulheres
não tenham a mesma igualdade de oportunidades que os homens. A avaliação
é feita por critérios desiguais em razão de gênero, e a necessidade de
atender a essa pressão faz com que mulheres sejam fortemente
prejudicadas em sua vida social e profissional.
Ideal de beleza ignora a diversidade de corpos
Ao longo do século XX, o padrão de beleza criado a partir das medidas
da média das mulheres deu lugar ao ideal de beleza, que valoriza um
tipo de corpo bem distante da média da sociedade. Em 1950, uma mulher de
1,60m e 63kg era modelo de beleza; atualmente a modelo tem de ter mais
de 1,75m e pesar 50kg ou menos. A modelo de 1950 tinha o corpo parecido
com o das mulheres de sua época; a de hoje tem o corpo bem distante da
realidade da maioria das mulheres.
O modelo ideal de beleza atual, incentivado pelos meios de
comunicação de massa, é extremamente limitador: para ser bonita é
necessário ser jovem, extremamente magra, alta e com traços europeizados
(pele, cabelos e olhos claros, cabelos lisos). Basta andar na rua para
perceber que é raríssimo alguém ter todas essas características – e
praticamente impossível tê-las ao mesmo tempo.
Trata-se de um modelo que ignora a diversidade racial e cultural
brasileira. É absurdo que, para ficar em um exemplo, cabelos escuros e
crespos sejam vistos como inadequados e necessitem ser clareados e
alisados para se enquadrar em um ideal de beleza que nega a história das
brasileiras. Porém, é esse ideal de beleza altamente excludente e
alienante que é tratado como único modelo a ser seguido se as mulheres
quiserem obter respeito social e profissional.
Infância direcionada para os cuidados com a aparência
Um dos efeitos da obsessão em obrigar mulheres a ter o corpo perfeito
está na pressão exercida durante a infância. Ao invés de brincar ou
estudar, as meninas são incentivadas a perseguir um corpo ideal desde
tenra idade.
Antes de aprender a ler, meninas já aprenderam a usar batom e a ter
medo de engordar. É cada vez mais comum encontrar maquiagem e tintura
para cabelos específicos para crianças. Saltos altos, tratamentos
estéticos e gestos limitados para não sujar roupas ou borrar a maquiagem
já são rotina para muitas meninas. Estudar, ter vida social e tentar
ser feliz são valores secundários: o que importa é aprenderem a
controlar e alterar o próprio corpo para obter a aparência perfeita.
Durante a puberdade, incapazes de aceitar as mudanças em suas formas e
o aumento do grau de gordura corporal, muitas meninas se entregam a
dietas de emagrecimento, às vezes até dificultando ou impedindo o
processo metabólico natural que levará à menarca. O impacto em suas
vidas varia de problemas com autoestima e insatisfação duradoura com seu
corpo, passando pelo desenvolvimento de distúrbios alimentares e
anorexia, podendo chegar à morte.
Igualdade de gênero, violência e declarações de direitos
A pressão para construir e manter o corpo perfeito resulta em
violência física e psicológica. Tentar atingir um modelo inatingível
gera angústia, estresse e sensação de inadequação. A pretexto de
modificar quem não se enquadra no modelo, estimula-se a zombaria e a
agressão, chegando ao ponto de agressão física (como os “rodeios de
gordas” na Unesp, no qual universitários perseguiam e agrediam suas
colegas que estavam acima do peso considerado ideal).
Além da questão da violência, há também a violação do princípio da
igualdade. Não é possível ter igualdade de gênero em um sistema que,
desde a tenra idade, força as meninas a se perceberem como fisicamente
inadequadas e dificulta a inclusão social feminina. Também há a violação
dos princípios de proteção ao desenvolvimento físico e mental das
crianças e adolescentes.
Declarações de direitos são fundamentais no combate a todo tipo de
discriminação contra mulheres, inclusive quando gera violência
psicológica. Dentre as diversas declarações e convenções, destacamos a
Convenção de Belém do Pará (1994), dedicada a combater a violência
contra mulheres. O artigo 6º declara o direito de a mulher ser
valorizada e educada livre de padrões estereotipados de comportamento e
práticas sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade ou
subordinação, e o artigo 8º, g, considera dever do Estado incentivar os
meios de comunicação a formular diretrizes adequadas de divulgação que
contribuam para a erradicação da violência em todas as suas formas e
enalteçam o respeito pela dignidade da mulher.
Combatendo a discriminação em razão de aparência
O combate às discriminações legitima a atuação do Estado em duas
frentes: estímulo a políticas públicas de combate à discriminação e
incentivo à introdução de mudanças nas áreas de educação e mídia para
modificar as relações de poder que estereotipam e patrocinam
comportamentos prejudiciais às mulheres.
O Estado brasileiro vem agindo por meio da Secretaria de Políticas
para Mulheres (SPM), desenvolvendo atuação específica para questionar e
combater os estereótipos sobre mulheres divulgados em anúncios
publicitários e programação televisiva. É importante lembrar que o
Estado não está censurando nem proibindo, está apenas questionando os
valores que são transmitidos pelos meios de comunicação. Ao questionar,
propõe mudança de paradigma para que a mídia combata a violência
simbólica contra mulheres.
A atuação da SPM, embora louvável e juridicamente correta, ainda é
insuficiente. É necessário haver mais envolvimento da sociedade civil e
dos demais poderes da República, a exemplo do que ocorre em outros
países. Na Suécia, anúncios que exploram o corpo feminino ou que usam
mulheres para vender produtos não ligados ao corpo feminino são pichados
e sofrem repúdio público. Na Espanha, os desfiles de moda seguem regras
para impedir a participação de modelos desnutridas ou jovens demais. Na
Inglaterra, anúncios de maquiagem e produtos tidos como
rejuvenescedores são retirados de circulação se fica evidente o excesso
de manipulação digital da imagem, caracterizando propaganda enganosa.
O Ministério Público de São Paulo tem interferido na indústria da
moda com bons resultados. Ao exigir modelos negras nas passarelas e
proibir algumas participações (modelos abaixo de 16 anos ou magras
demais), abriu espaço para maior diversidade de mulheres nas passarelas.
É necessário ampliar esse tipo de iniciativa para outras áreas.
Anúncios publicitários ainda são bastante discriminatórios e o Conar,
apesar da pressão da sociedade civil, pouco tem feito para modificar
esse quadro. Falta diversidade nas revistas e na televisão: a aparência
física da maioria das apresentadoras de telejornais, atrizes e modelos
está bem distante da média da população e não representa a diversidade
das regiões e dos corpos das mulheres brasileiras.
O descaso com que são recebidas as críticas à falta de diversidade na
mídia faz crer que é necessário forçar a implementação de cotas para
estimular a diversidade feminina. Também é o caso de efetivamente punir
propaganda enganosa ou discriminatória em razão de aparência. Em suma, é
necessário agir não só por meio de políticas públicas, mas
judicialmente, para impedir que seja incentivado um ideal de beleza
excludente que atua para controlar os corpos e restringir a vida das
mulheres.
Mulheres são muito mais do que corpos, e corpos são muito mais do que
aparência estética. É importante lembrar disso para combater o controle
do corpo feminino através da imposição midiática de um modelo estético
opressor, que ignora a diversidade e que não contribui para uma vida com
mais liberdade para as meninas e mulheres.
Fonte: Revista Fórum
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