
Passou 13 de maio e
eu fiquei pensando nessa mancha, nessa barbárie, nesse holocausto que
aconteceu com o povo negro e que se mistura à história da construção
desse país. De todos os problemas idiossincráticos da nação, de todos os
traços emocionalmente comprometidos do cidadão brasileiro, de todas as
amarras que costumam permear o pensamento mais atrasado da evolução
humana, considero o preconceito racial o mais torpe e o mais cruel. Está
na base da nossa educação, está na palavra do professor, na escolha de
quem vai ser a princesinha na festa da escola, de quem vai ser o chefe, a
miss, o padre. Está no critério do juiz, nas ações policiais, na rua,
nos escritórios, nos hospitais. Em todo canto o povo negro é olhado de
revés. Como se fosse uma gente de segunda categoria. Referenciada nos
princípios hitlerianos, a estética exemplar oficial considera feio o
nariz negro, ruim o seu cabelo, suja a sua cor. Lástima. Sei do que
estou falando, conheço o tema, tenho vários grupos sociais e encontro no
meu meio social, na minha classe artística, no meu bairro muito mais
gente branca do que gente negra. É preciso cautela e reflexão e coragem
para abordar esse tema porque de alguma maneira o preconceito racial e a
discriminação continuam sendo ensinados e perpetuados sem que
percebamos. A escravidão foi traumática, a tortura era o método
principal usada abundantemente por 4 séculos. Nenhum país com uma
história dessa pode seguir em frente sem um tratamento, sem sentar no
divã. O negro era vendido a metro! Então, se uma peça de negro, como um
tecido, fosse de 1,80m por exemplo, comprava-se um negro de 1,70 m e
podia- se completar com uma criança de 20 centímetros. Talvez devêssemos
trazer essa história para o cinema, o Brasil precisa assistir ao filme
da sua vida assim como sabemos tanto sobre a guerra do Vietnã e sobre os
campos de concentração onde foram mortos os judeus. Precisamos botar
essa história na tela. Falta-nos Espelho, não é a toa que o nosso
querido e inteligente Lázaro Ramos tem um programa no Canal Brasil com
esse nome. Olhemos as nossas mídias, as bancas de jornal... em todas as
searas, a maioria avassaladora dos que chegam “lá” é branca. Poderia ser
um acaso num país multirracial? Poderia, mas não é. Funda-se isso.
Criamos essa realidade à medida que nosso contingente de pobres no
Brasil se mistura também com os números de negros. Existem muitos
negros, milhares que vivem bem, é claro, mas o que digo é que a maioria
dos pobres é negra e se eles não têm escola boa, saneamento básico, o
ensino de uma arte para que se traduza e amplie o seu olhar sobre o seu
tempo, ele vai continuar um escravo urbano, condenado ao subemprego, sem
a ascensão do tamanho do seu sonho, sem respeito e sem contribuir em
outras esferas para o avanço da sociedade. Isso está tão engendrado em
nosso comportamento que eu vejo crianças que se sentem patroas dos
filhos das empregadas. Errado. Criança não é patrão e nem empregado de
ninguém. O fato do meu pai ser patrão da doméstica não faz do filho dela
meu empregado também. Repara bem como isso acontece a toda hora e nem
se comenta. Um amigo meu adotou três filhos, um gay, um negro e um com
Síndrome de Down. Preocupou-se em especial com o Down que é uma formação
que costuma provocar rejeição dos outros. A estranheza foi perceber nos
parques, nos teatros, nos aniversários, nos lugares onde leva as
crianças, que o campeão do bullying era o negro. Aliás, toda criança
negra e brasileira sabe o que é bullying, mas nunca se chamou de
bullying o eterno caçoar aos negros. Estou incomodando? Se estou, não é
culpa minha, é o que acontece quando levantamos o tapete e não há como
fugir do acúmulo do que ali está entulhado sistematicamente. Continuamos
bradando que vivemos numa democracia racial mesmo sabendo que da
totalidade dos jovens que morrem no Brasil, 80 % são negros e de
periferia. Pertencem a categoria da vida dos que não valem. Um dia
perguntaram ao rapper Mano Brown: “mas como saber, num país tão
misturado, quem é negro e quem não é? E ele respondeu: “a polícia sempre
sabe.” Estou feliz com as bananas nos gramados. Trata-se de uma
manifestação explícita de racismo, esse sórdido pensamento brasileiro
que precisa sair do armário, isso, exponha-se. O racismo no futebol vem
revelar a verdade que querem esconder, escamotear: não é econômico, como
querem muitos, porque quem tem recebido banana ganha milhões. O que
está acontecendo? Sinto-me protegida porque sou artista e o “status” de
uma pessoa que muitos conhecem pela arte dá uma protegida na gente e
diminui o impacto. Mas sou flagrantemente negra. E quando, de vez em
quando, acontece um “escorregão” da parte do discriminador, ele se
corrige e diz: “ai, eu não sabia que era você.” Ou seja, coitada da
minha prima, dos meus amigos negros e vizinhos, coitado do país que é
anônimo. Se a pessoa acabasse de falar, ela diria: “pensei que era uma
preta qualquer”, mas ela não diz. Sorri, ajuda a orfanatos, ganha status
por sua caridade, vai a igreja aos domingos, tem nojo da empregada
dela. Acha que sua família é mais importante do que aquele quilombo, que
mora na favela e cuja rainha desce o morro todo o dia para fazer a sua
comida, arrumar a casa, varrer. 13 de maio, levante o tapete.
- Elisa Lucinda