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segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Racismo e caso Aranha: O que Luciano Huck e Danilo Gentili tem a ver com isso?


racismo


A ira justa do goleiro Aranha e de um anônimo negro contra o racismo cotidiano. O que Danilo Gentili, um juiz e Luciano Huck tem a ver com isso?


Quando parte da torcida do Grêmio encheu a boca, em Porto Alegre na quinta-feira (28/08), para chamar o negro goleiro do Santos de “macaco”, apareceu um herói, o próprio alvo dos xingamentos, para vingar os tantos humilhados pelo racismo.
Com a ira santa dos justos, Mário Lúcio Duarte Costa, de 33 anos, o Aranha, gesticulou e gritou furioso contra a turba infame, e deixou bem claro o orgulho da pele colorida, a mesma de seus ancestrais africanos (veja aqui).
Ao menos uma criminosa, Patricia Moreira, moradora em Porto Alegre, já foi identificada, filmada enquanto insultava o goleiro:
“Ma-ca-coooo!”.
A meliante já perdeu o emprego como auxiliar de saúde bucal no Centro Médico Odontológico da Brigada Militar. Deverá responder a processo criminal por injúria racial, crime sujeito a pena de um a três anos de reclusão, com multa.
A defesa de Patrícia certamente dirá que tudo não passou de uma “brincadeira”, que ela não fez mais do que repetir o que lhe ensinaram algumas celebridades (às vezes até com o aval da Justiça, como se verá).
O humorista Danilo Gentili, com milhões de seguidores do Twitter, não defendeu publicamente seu direito de ofender negros, chamando-os de “macacos”?
“Alguém pode me dar uma explicação razoável por que posso chamar gay de veado, gordo de baleia, branco de lagartixa, mas nunca um negro de macaco?”
O mesmo Gentili não teve, depois, a ousadia de oferecer bananas a um jovem ativista negro, o redator Thiago Ribeiro, que o acusou de racista?
“Sério @LasombraRibeiro [Thiago Ribeiro] vamos esquecer isso… Quantas bananas vc quer pra deixar essa história pra lá?”
Isso pode?
Não é difícil que Patrícia Moreira tenha ouvido falar da tentativa de Thiago Ribeiro de obter a condenação de Danilo Gentili. Talvez tenha visto também que um juiz, Marcelo Matias Pereira, da 10ª Vara Criminal da Justiça de São Paulo, absolveu Danilo Gentili do crime de injúria racial, por considerar que o comediante não teve “propósito e intenção de ofender a vítima”.
Ah, tá!
Ganha um exemplar do livro “Não Somos Racistas”, de Ali Kamel, diretor geral de jornalismo e esportes da TV Globo quem adivinhar a cor do juiz…. Não, não ganha não porque esta é fácil demais.
Nem é preciso dizer que a sentença do juiz branco deu ânimo para centenas de boçais e fãs de Gentili sentirem-se livres para extravasar seu ódio racista pelas redes sociais e seguirem repetindo os insultos, como se fossem brincadeira:
“Ma-ca-coooo!”
Que mal tem?
Tem muito mal. “Fiquei bem nervoso. Com o perdão da palavra, fiquei p… Isso dói. Não é possível. Bati no braço e disse que sou preto mesmo”, declarou Aranha logo depois de finalizada a partida.
Será que o juiz Marcelo Matias Pereira, que absolveu Danilo Gentili, sabe da responsabilidade que pode ter nesse episódio trágico?
Aranha tornou-se herói porque não fez a menor questão de ficar tranquilão diante da ofensa, porque não se fingiu de surdo, porque denunciou os agressores. Porque chutou o balde do racismo.
Ele não quis “ressignificar o xingamento”, como alegaram ter feito Daniel Alves, o jogador brasileiro atuando no Barcelona, quando comeu a banana que um torcedor racista jogou para ele.
Aliás, a defesa da racista do Grêmio também poderá alegar que ela não considera “macaco” um xingamento, já que ela mesma vê-se como um. “Como diria Luciano Huck, somos todos macacos”… Quem sabe, cola.
Aranha chegou a ser admoestado pelo árbitro da partida, Wilton Pereira Sampaio , que o acusou de estar “provocando a torcida adversária”.
Logo, outros atletas negros do Santos, como Arouca, David Braz e Robinho, cercaram o juiz para impedi-lo de, novamente, culpar a vítima pela violência que a oprime.
Coincidência mais linda, no mesmo dia, outro negro, anônimo, também distribuiu lições de humanidade contra o racismo. Veja aqui.
Acusado de roubar uma loja no Salvador Shopping, da capital baiana, o jovem também não se intimidou e gritou para os seguranças: “Eu não roubei nada. Eu sou trabalhador, rapaz, não sou ladrão, não! Cadê o roubo? Mostre o roubo aqui.” E baixou as calças. Quase nu, demonstrou o fundo racista da acusação que sofria.
O shopping ficou paralisado, consumidores interromperam a correria entre as lojas para assistir à cena. E a massa foi ao delírio, com aplausos e gritos de apoio, quando percebeu a vitória moral do inocente enfrentando a perseguição.
Ainda do lado de fora, o homem continuou gritando com o segurança. “Só porque é negro, é negão, vai roubar. Vá se f…”. Mais aplausos.
Aranha estava furioso. O anônimo estava furioso. Eles colocaram os agressores no seu lugar. [...]

domingo, 31 de agosto de 2014

“Pensei que era uma preta qualquer.”





Passou 13 de maio e eu fiquei pensando nessa mancha, nessa barbárie, nesse holocausto que aconteceu com o povo negro e que se mistura à história da construção desse país. De todos os problemas idiossincráticos da nação, de todos os traços emocionalmente comprometidos do cidadão brasileiro, de todas as amarras que costumam permear o pensamento mais atrasado da evolução humana, considero o preconceito racial o mais torpe e o mais cruel. Está na base da nossa educação, está na palavra do professor, na escolha de quem vai ser a princesinha na festa da escola, de quem vai ser o chefe, a miss, o padre. Está no critério do juiz, nas ações policiais, na rua, nos escritórios, nos hospitais. Em todo canto o povo negro é olhado de revés. Como se fosse uma gente de segunda categoria. Referenciada nos princípios hitlerianos, a estética exemplar oficial considera feio o nariz negro, ruim o seu cabelo, suja a sua cor. Lástima. Sei do que estou falando, conheço o tema, tenho vários grupos sociais e encontro no meu meio social, na minha classe artística, no meu bairro muito mais gente branca do que gente negra. É preciso cautela e reflexão e coragem para abordar esse tema porque de alguma maneira o preconceito racial e a discriminação continuam sendo ensinados e perpetuados sem que percebamos. A escravidão foi traumática, a tortura era o método principal usada abundantemente por 4 séculos. Nenhum país com uma história dessa pode seguir em frente sem um tratamento, sem sentar no divã. O negro era vendido a metro! Então, se uma peça de negro, como um tecido, fosse de 1,80m por exemplo, comprava-se um negro de 1,70 m e podia- se completar com uma criança de 20 centímetros. Talvez devêssemos trazer essa história para o cinema, o Brasil precisa assistir ao filme da sua vida assim como sabemos tanto sobre a guerra do Vietnã e sobre os campos de concentração onde foram mortos os judeus. Precisamos botar essa história na tela. Falta-nos Espelho, não é a toa que o nosso querido e inteligente Lázaro Ramos tem um programa no Canal Brasil com esse nome. Olhemos as nossas mídias, as bancas de jornal... em todas as searas, a maioria avassaladora dos que chegam “lá” é branca. Poderia ser um acaso num país multirracial? Poderia, mas não é. Funda-se isso. Criamos essa realidade à medida que nosso contingente de pobres no Brasil se mistura também com os números de negros. Existem muitos negros, milhares que vivem bem, é claro, mas o que digo é que a maioria dos pobres é negra e se eles não têm escola boa, saneamento básico, o ensino de uma arte para que se traduza e amplie o seu olhar sobre o seu tempo, ele vai continuar um escravo urbano, condenado ao subemprego, sem a ascensão do tamanho do seu sonho, sem respeito e sem contribuir em outras esferas para o avanço da sociedade. Isso está tão engendrado em nosso comportamento que eu vejo crianças que se sentem patroas dos filhos das empregadas. Errado. Criança não é patrão e nem empregado de ninguém. O fato do meu pai ser patrão da doméstica não faz do filho dela meu empregado também. Repara bem como isso acontece a toda hora e nem se comenta. Um amigo meu adotou três filhos, um gay, um negro e um com Síndrome de Down. Preocupou-se em especial com o Down que é uma formação que costuma provocar rejeição dos outros. A estranheza foi perceber nos parques, nos teatros, nos aniversários, nos lugares onde leva as crianças, que o campeão do bullying era o negro. Aliás, toda criança negra e brasileira sabe o que é bullying, mas nunca se chamou de bullying o eterno caçoar aos negros. Estou incomodando? Se estou, não é culpa minha, é o que acontece quando levantamos o tapete e não há como fugir do acúmulo do que ali está entulhado sistematicamente. Continuamos bradando que vivemos numa democracia racial mesmo sabendo que da totalidade dos jovens que morrem no Brasil, 80 % são negros e de periferia. Pertencem a categoria da vida dos que não valem. Um dia perguntaram ao rapper Mano Brown: “mas como saber, num país tão misturado, quem é negro e quem não é? E ele respondeu: “a polícia sempre sabe.” Estou feliz com as bananas nos gramados. Trata-se de uma manifestação explícita de racismo, esse sórdido pensamento brasileiro que precisa sair do armário, isso, exponha-se. O racismo no futebol vem revelar a verdade que querem esconder, escamotear: não é econômico, como querem muitos, porque quem tem recebido banana ganha milhões. O que está acontecendo? Sinto-me protegida porque sou artista e o “status” de uma pessoa que muitos conhecem pela arte dá uma protegida na gente e diminui o impacto. Mas sou flagrantemente negra. E quando, de vez em quando, acontece um “escorregão” da parte do discriminador, ele se corrige e diz: “ai, eu não sabia que era você.” Ou seja, coitada da minha prima, dos meus amigos negros e vizinhos, coitado do país que é anônimo. Se a pessoa acabasse de falar, ela diria: “pensei que era uma preta qualquer”, mas ela não diz. Sorri, ajuda a orfanatos, ganha status por sua caridade, vai a igreja aos domingos, tem nojo da empregada dela. Acha que sua família é mais importante do que aquele quilombo, que mora na favela e cuja rainha desce o morro todo o dia para fazer a sua comida, arrumar a casa, varrer. 13 de maio, levante o tapete.
 
 - Elisa Lucinda

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Mussum e o País ingênuo que não existe mais


Vinte anos após a morte do humorista, a sua imagem é hoje usada por quem se ressente por não poder esculachar minorias sem provocar ofensas.

Os Trapalhões
 Marcelo Braga/Flickr
Grafite inspirado no quarteto Os Trapalhões, sucesso dos anos 1980 na tevê brasileira

Quem acompanhou as homenagens ao humorista Antonio Carlos Bernardes Gomes, o Mussum, morto há exatos 20 anos, imagina que o Brasil era um lugar puro, ingênuo e agradável no tempo dos Trapalhões. Não havia maldade, não havia patrulha, não havia preconceito. Tal qual Adão e Eva no Paraíso, toda a maldade estava nos olhos de seus criadores, os chatos que inventaram de inventar o pecado e a escuridão e transformaram brincadeira em ofensa e alegria, em constrangimento.
Por algum motivo, o histórico dos Trapalhões se tornou exemplo de como era possível viver em harmonia, sem patrulhas nem amarras politicamente incorretas, até bem pouco tempo atrás. A perda dessa “inocência” é lamentada por quem vê no Mussum, um ator e músico de talento incomparável, o símbolo de um período permissivo, libertário e saudável. Um tempo em que o da poltrona podia ver um negro alcoólatra sacaneando um cearense cabeça chata, que sacaneava o travesti desbocado, que sacaneava o negro banguela.
É sempre delicado analisar, de forma isenta, o que formou e faz parte da nossa memória afetiva. Os Trapalhões são parte dessa memória, pelo menos da minha, que passei boa parte da vida chegando em casa ansioso depois dos passeios de domingo para assistir ao programa da TV Globo. Até hoje me pego rindo à toa das esquetes, algumas disponíveis no YouTube graças às almas mais altruístas. Mas me incomoda um discurso comum entre os antigos fãs do quarteto: naquele tempo não tinha maldade. Como me incomoda o uso da imagem do Mussum como prova desse discurso: “Olha só, batíamos nele e ele nem ligava”.
Aparentemente não ligava mesmo, e isso torna a discussão ainda mais complicada – algo como “se ele não se ofendia, quem sou eu para me ofender por ele?” Mas, zapeando pela internet, encontrei recentemente uma entrevista antiga do comediante à revista humorística Casseta. Me perguntei se aquela entrevista seria aceita hoje e os porquês. Foi o encontro de dois tipos de humor, que tiveram o seu tempo, e hoje talvez não produzissem o mesmo efeito por um motivo simples: evoluímos. Aos trancos, e não na velocidade ou totalidade que deveríamos, mas evoluímos.
Na entrevista é possível rir em muitos momentos e vivenciar o clima de despojamento da época e do bar onde foi gravada. Mas há uma certa melancolia ao tropeçar no velho humor sexista e homofóbico do Casseta e Planeta, grupo que fez sucesso nos anos 1990 sem que parte dos seus integrantes tivesse saído da fase anal. A cada quatro perguntas, três tinham alguma pegadinha de duplo sentido. Você deu? Sentou? Entrou? É chegado? É de fora pra dentro? E gargalhadas.
Alguém, certificando-se de não estar sendo vigiado, poderia confessar: “Foi engraçado, vai?”. E outros poderiam dizer: engraçado para quem?
Na história dos movimentos sociais, só quem sofreu todos os preconceitos na carne (ou na pele) pode dizer quantos anos foram congelados no tempo graças às piadas que ridicularizavam determinados tipos sociais. Quantos anos de luta e sofrimento foram desmoralizados pela ofensa preservada no estereótipo da bicha louca, do negro burro, do judeu (ou o turco/árabe) muquirana, da vizinha devassa?
No caso do Mussum, apelido dado por Grande Otelo em referência a um peixe liso, a história é um pouco mais complexa. Primeiro porque nem ator nem personagem eram totalmente ingênuos, como hoje parecem ser lembrados. O primeiro aprendeu a se virar desde cedo, quase sempre em grupo, no morro, no bar, na Aeronáutica, no teatro, na roda de samba, no estúdio da tevê. O segundo rebatia provocações e não levava desaforo para casa – “negro é seu passado”.
A negação à questão causava desconforto aos grupos antirracismo já na época. Na entrevista, Mussum comentava a reação do movimento negro a uma frase de Renato Aragão ao ver integrantes de sua família em uma piscina: "Pensei que fosse uma sopa de berinjela”. Mussum dizia não entender a gritaria. Argumentava que também sacaneava os cearenses, caso do colega, chamando-os de cabeça de passar roupa. E que ninguém se ofendia por isso. Talvez seja esse o fator de nostalgia de quem hoje vê no período um tempo de inocência: o tempo em que uma minoria podia sacanear outra minoria em canal aberto e ninguém dizia se ofender por isso.
Na mesma resposta, Mussum dizia não aceitar as críticas de que não ajudava os negros, e citava como exemplo o fato de alimentar vários deles em sua casa. E terminava dizendo estar disposto a debater o racismo apenas em casos de discriminação expressas, caso alguém dissesse, por exemplo, ter sido proibido de entrar em determinados lugares por causa da cor.
A entrevista é de outubro de 1991. Mussum já havia visto e vivido muito da vida. Consolidara uma carreira brilhante com uma generosidade ímpar, como atestam todos os testemunhos sobre ele desde a sua morte. Mas não parecia ter se dado conta a tempo do quanto servia a um discurso violento, que na prática, e fora das telas, provocava mais choro do que gargalhada – ao menos para quem era diariamente maltratado e/ou ridicularizado por causa da cor da pele.
O Brasil dos tempos dos Trapalhões, como o Brasil de hoje, não era um País inocente. Era um País onde a maioria da população era negra ou morena, mas não era maioria nas universidades, nos postos de destaque de empresas, nos gabinetes públicos, nos sistemas de representação, na produção científica, nos tribunais e até nos shoppings. Era maioria, no entanto, nas ruas, nos grupos de jovens abandonados, nos morros, nas cadeias, nas fotos com tarja preta dos jornais.
No Brasil do tempo dos Trapalhões, como o Brasil de hoje, poucos admitiam ter preconceito, e poucos seriam capazes de barrar a entrada de alguém em um espaço público pela cor da pele. Como hoje, e como em outros países, havia quem atirasse bananas para jogadores negros ou mulatos no campo, mas só porque eram, como ainda são, protegidos pelo anonimato da arquibancada.
Ao pé do ouvido, e certificando-se de não estar sendo vigiado, havia, como ainda há, quem colocasse em prática os mecanismos invisíveis de seleção, a começar dentro de casa, na escolha das companhias dos filhos (sobretudo das filhas), no discurso de dois pesos e duas medidas a depender da cor de quem prestava um serviço (ou uma barbeiragem no trânsito ou um chute torto no jogo de futebol) ou nas piadas inocentes que mantinham todos na mesma posição herdada dos avós, quando a escravidão formal fora substituída por outras formas de escravidão.
Naquele Brasil, o personagem negro e alcoólatra sacaneava o cearense cabeça chata, que sacaneava o travesti desbocado, que sacaneava o negro banguela – para alegria dos patrões brancos que não entravam na trama.
O Brasil de hoje não é tão diferente do Brasil dos Trapalhões, mas o acumulado de anos, lutas, instrumentos de políticas públicas, campanhas e debates começam a produzir um mínimo de constrangimento a velhas gracinhas antigamente aceitas e transmitidas de pais para filhos.
Tempos atrás, o integrante de uma banda de um stand up comedy abandonou o espetáculo ao ser chamado de “macaco” por um comediante branco diante de uma plateia de maioria branca. Esses são os tempos de consciência que a casa grande confunde com hipocrisia: os tempos em que os anos de sofrimento e luta não estão expostos para o riso, nem dos amigos, nem da plateia. Uma pena que Mussum não tenha vivido para ver. E uma pena que sua imagem, entre genial e inocente, seja usada hoje para apelos ao retorno de outros tempos: os tempos em que a risada era a única arma disponível contra o esculacho dos séculos de escravidão não abolida.

 Fonte: Carta Capital

domingo, 3 de agosto de 2014

O racismo não está nas diferenças



O racismo não está nas diferenças



No último dia 25, Dia Nacional da Mulher Negra, data oficializada no Brasil como oportunidade para homenagear Tereza de Benguela, houve muita discussão em torno da necessidade de se criar uma data separada para as mulheres negras. Muitos alegam, em comentários na própria página da Revista Fórum, que o 25 de Julho acaba sendo mais uma forma de racismo, pois diferencia as mulheres negras das demais mulheres, especialmente das brancas. Muitos comentaristas são pessoas bem intencionadas, que não conseguem identificar a raiz do desconforto que sentem em datas como o Dia da Mulher Negra ou o Dia da Consciência Negra. Eventos voltados para as pessoas negras acabam incomodando essas pessoas. Por quê?
O Brasil é um país que trata questões raciais de forma problemática e preocupante: é corriqueira a noção de que nomear cores é indesejável, ou seja, a simples constatação de que há pessoas brancas, pretas e amarelas, para grande parte da população, já é encarada como uma espécie de racismo. O que essas pessoas ignoram ou teimam em compreender é que o racismo existe a partir da ideia de superioridade de um grupo sobre outro, tendo como um de seus mecanismos o silenciamento e apagamento das manifestações identitárias do grupo considerado inferior. Portanto, o racismo não está no fato de reconhecer que existem pessoas de diferentes cores e práticas culturais enraizadas na experiência coletiva de cor, mas sim em dissimular o material e escondê-lo, sem promover qualquer reflexão sobre a diversidade existente em certo contexto social.
Em nosso país há pessoas de muitas cores, assim como manifestações culturais plurais e diversificadas; afinal, nossos ancestrais se originaram de diferentes lugares do planeta, de quem herdamos nossas religiões, danças, músicas, artes e culinária. Não há nada de racista em enxergar as belas diferenças no Brasil – mas é preciso ir além da celebração. A cor de uma pessoa, atualmente, ainda implica em situações de discriminação ou desfavorecimento. Esse é um fato histórico que vem sendo reproduzido há muitos séculos e ganha força na omissão. Por isso, agir como se o racismo não existisse não faz com que ele desapareça; pelo contrário, possibilita sua manutenção sem que em qualquer momento seja desafiado.
Quando o movimento negro e o feminismo negro estabelecem datas simbólicas e levantam o debate racial dentro dos movimentos sociais, a esperança é de que mais pessoas passem a enxergar o racismo estrutural e cotidiano, presente em todas as esferas sociais. Usando o 8 de Março – Dia da Mulher – como exemplo, é possível analisar a forma como o racismo atua: nesse dia é feita uma universalização da experiência feminina, seja no sentido político ou no sentido de homenagem. O que acontece é que todas as mulheres são unificadas sob seu gênero, sem que sejam consideradas suas especificidades. Isso não é totalmente negativo, mas ainda é muito prejudicial para certos grupos de mulheres. Ser uma mulher negra não é o mesmo que ser uma mulher branca – e isso não se justifica sob pretextos biologizantes e higienistas, mas sim por razões socioculturais. Isso é um fato pautado em dados, estatísticas e análises acadêmicas dos dados colhidos em pesquisas: a forma como mulheres negras são tratadas em nossa cultura é carregada da herança mais cruel trazida da escravidão e ainda hoje continua dificultando suas vidas.
Somos pessoas diferentes e tais diferenças são pertinentes no mundo real. Isso não quer dizer que somos melhores ou piores do que outras pelo simples fato de termos a pele de uma certa cor ou uma religião diferente da outra. Ainda assim, conscientizar-se de nossas diferenças nos prepara para reagir diante do racismo, não o aceitando independente de quem seja agredido por ele. Além disso, a plena aceitação da diversidade possibilita a convivência amistosa e o respeito pelo espaço do outro, sem nenhuma síndrome de superioridade. Desse ponto de vista, é possível entender, por exemplo, que o cabelo crespo é uma característica das pessoas negras, que ainda lutamos contra o preconceito direcionado a esse tipo de cabelo e que esse preconceito é originado no racismo. Somente identificando todos esses fatos e nomeando o racismo é possível que ele seja extinguido.
Por isso, um dia para lembrar e discutir as especificidades sociais das mulheres negras não configura racismo. Datas como 25 de Julho e 20 de Novembro são oportunidades catalisadoras de força, meios de denunciar a discriminação e de propor soluções. O racismo não está em nossas diferenças, mas sim na hierarquização que, infelizmente, ainda é atribuída a elas.

Foto de capa:  Flickr / University of the Pacific Black Law Student Assoc. 

Fonte: