Tivemos sorte por não ver visionários como Einstein,
Newton e Beethoven em uma sala de aula. Com dificuldade de aprendizado,
seriam transformados em bons alunos, diagnosticados e medicados
“Foco” é a palavra de ordem nas escolas e no
mercado de trabalho. Para vencer na vida, a dispersão de atenção para
outros interesses além das tarefas do dia a dia é não apenas mal vista: é
diagnosticável como um transtorno mental passível de cura. De acordo
com uma ala da psiquiatria, essa ideia de “transtorno” parte de duas
premissas. Uma é semântica. Ela suaviza a ideia de “doença mental” e
passa a ser usada como uma espécie de identidade psíquica por meio de
nomenclaturas como “TOC”, “TDAH”, “hiperatividade”, “bipolaridade”,
“ansiedade” e “transtornos de humor”.
A outra dita que, por trás da desordem, existe uma ordem. Nesta
ordem, o estudante estuda e o trabalhador trabalha. Em nome dela nos
medicamos. Cada vez mais e, segundo especialistas, sem que sejam levados
em conta os impactos, para as crianças e suas famílias, do diagnóstico e
da medicação.
Quem analisa os índices de tratamento à base de drogas psicoativas
imagina que o planeta enfrenta hoje uma “epidemia” de transtornos
mentais. Nos EUA, uma em cada 76 pessoas são hoje consideradas
incapacitadas por algum tipo de transtorno – em 1987, este índice era de
uma em cada 184 americanos. O número de casos registrados aumentou 35
vezes desde então.
Segundo o Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA, 46% da
população se enquadrariam nos critérios de doenças estabelecidos pela
Associação Americana de Psiquiatria. Tais diagnósticos criaram um
mercado poderoso de medicamentos psicoativos – o que significa medicar
tanto pacientes com crises agudas de ansiedade até crianças
diagnosticada com grau leve de “hiperatividade” ou “espectro de
autismo”, a chamada síndrome de Asperger. Essas crianças precisam manter
o “foco” na sala de aula se quiserem ter alguma chance de passar no
vestibular.
A pressão sobre elas em um mundo cada vez mais competitivo cria um
consumidor fidelizado: a criança que hoje precisa de medicamento para se
manter em alerta será, no futuro, o adulto dependente de medicamentos
para dormir. Essa pressão, apontam estudos, tem origem na sala de aula,
passa pela sala da direção, chega aos pais como advertência e desemboca
na sala do psiquiatra, incumbido da missão de enquadrar o sujeito a uma
vida sem desordem.
Mas como cada categoria de transtorno mental é construída e
delimitada? Quais pressupostos fazem com que determinados comportamentos
e/ou estados emocionais sejam considerados normais e outros, não? Quem
definiu que uma criança com foco na sala de aula é normal e uma
desconcentrada é anormal? Qual é, enfim, a “ordem” que a prática
psiquiátrica visa a garantir?
(...)
Se for esta a normalidade que tanto buscamos, o mundo teve sorte por
não ver visionários como Bill Gates, Einstein, Newton e Beethoven em uma
sala de aula nos dias atuais. Todos eles tinham dificuldade em
socialização, comunicação e aprendizado. Sofriam, em algum grau, de
espectro de autismo, e seriam facilmente transformados em bons alunos,
diagnosticados, tratados e medicados. O mundo perderia quatro gênios,
mas ganharia excelentes funcionários-padrão, contentes e domesticados.
Fonte: Carta Capital
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