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Imagem: Reprodução |
a essas alturas, creio que não haja um ser vivente no brasil com
acesso aos veículos de comunicação que não saiba que o eduardo campos
morreu hoje pela manhã. eduardo teve cinco filhos com sua esposa, a
renata: maria eduarda, joão, pedro, josé e miguel.
em meados de fevereiro de 2012, após entregar todos os meus alunos
para seus responsáveis no portão da escola, recebi um chamado da minha
coordenadora: ‘ju, a mãe do enzo morreu.’ eu havia acabado de entregar o
enzo para a babá toda trabalhada na cara de paisagem, que não deixou
entrever em nenhum momento que estava levando o enzo para a casa da tia
para que ele e seus irmãos recebessem uma das piores notícias que um ser
humano pode receber. o enzo e a camila, sua irmã gêmea, tinham quatro
anos. o pietro, seu irmão mais velho, tinha seis.
a morte da mãe do enzo era esperada por todos. após uns dois anos
lutando contra um câncer devastador, uma cama hospitalar havia sido
instalada em um dormitório da casa, enfermeiros 24h haviam sido
contratados, doses cavalares de analgésico começaram a ser ministradas
diariamente e, enfim, todos passaram a conviver com a eminência do
último suspiro daquela mãe que mal teve tempo de cuidar de seus próprios
filhos. quando eu o conheci, o enzo era uma criança amorosa, doce,
sensível e muito mais madura do que seu corpinho de quatro anos
revelava. sorria pouco e logo se acabrunhava quando ria, como quem tem
culpa ou vergonha de se divertir. falava baixo, muito baixo, do jeito
que só quem viu sua casa se tornar um hospital fala.
após a morte, o enzo demorou umas duas semanas para voltar a escola.
uns dias antes da data marcada, sentei em roda com as crianças para
explicar para elas o que havia acontecido:
eu: pessoal, quem sabe o que é morrer?
- é quando a pessoa não existe mais.
- é quando a gente vira estrelinha.
- meu vô morreu.
- meu peixe morreu e a gente enterrou numa caixinha na pracinha.
- meu peixe também morreu e minha mãe jogou na privada!
eu: HAHAHAAHAHAHA é a cara da sua mãe jogar o peixe na privada, amor!
- a mãe do enzo morreu, né teacher?
eu: como você sabe, amor?
- minha mãe me contou.
eu: então, pessoal. é verdade. a mãe do enzo morreu. ela virou estrelinha no céu.
conversamos um tanto esse dia. sobre mamães, sobre morrer, sobre ser
legal, atencioso e querido com quem acabou de perder a mãe. foi a deixa,
também, para eu contar para eles que o meu pai também era uma
estrelinha no céu. quando o enzo voltou para a escola, ele correu na
minha direção e disse:
- teacher, eu faltei muito porque a minha mãe morreu.
- não tem problema, amor. eu também faltei muito na escola quando o meu pai morreu.
criamos, eu e o enzo, uma espécie de irmandade-orfã na classe. foi
bom para ele saber que não era o único que havia vivenciado a
experiência terrível que é perder pai ou mãe. quando o assunto vinha à
tona, ele sempre dava um jeito de soltar um ‘que nem seu pai, né
teacher?’ que o reconfortava. ainda que ele tenha passado a rir com mais
leveza e menos culpa e, no fim das contas, tenha se tornado uma criança
que não convive com um doente terminal dentro de casa, quando ele
parava quieto era possível perceber uma vaguidão no olhar, uma ausência,
um buraco.
agora tem um monte de gente reclamando no facebook das piadinhas,
comentários de mau gosto, intrigas etc sobre a morte do eduardo campos.
como eu escolho meus amigos a dedo, ‘nunca vi nem comi eu só ouço
falar’. mas tem, né? sempre tem, aos montes. e salvo o miguel, que tem
três meses de idade, em algum momento os filhos do eduardo campos vão
topar com alguns dos comentários de má-fé que estão rolando por essas
timelines de meu deus. não bastasse a dor de perder seu pai, estes
quatro jovens terão que conviver com a dor de ver sua morte como mote
para que um sem número de pessoas destile seu veneno, seu ódio, sua
ignorância e insensatez por aí.
não sei quantos de vocês já perderam o pai ou a mãe. ou os dois. quem
já perdeu, há de concordar comigo e com o enzo que essa dor a gente não
deseja nem para o pior inimigo. amanhã ou depois, a maria eduarda, o
joão, o pedro, o josé e o miguel vão enterrar seu pai e, aos poucos,
reconstruir suas vidas com algumas vigas a menos. a gente sabe como é: a
vaguidão, o buraco, as vigas, o menos. eu, o enzo, você e você. então,
caso você tope com algum comentário maldoso sobre a morte do eduardo
campos, dê nome aos bois. pratique a humanidade e a alteridade que dizem
estarem perdidas. não estão, não, amig@, a não ser que você não as
pratique.
então, pelo sim, pelo não, vamos lá, todos juntos, em uníssono:
morreu a paula, mãe do pietro, da camila e do enzo. morreu o juarez, pai
dessa que vos escreve. morreu o eduardo, pai da maria eduarda, do josé,
do pedro, do joão e do miguel.
Fonte: Filosofinhas
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