quinta-feira, 20 de novembro de 2014

O desabafo de uma consciência negra




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Prefiro fugir à regra. Não gosto de expressar minha opinião a respeito de assuntos ‘polêmicos’, mas vez por outra é necessário abrir mão de certos hábitos. Muito me incomoda ter um tempo determinado para tratar qualquer assunto. É como se a sociedade, como um todo, dissesse: ‘Não! Agora não é hora de falar sobre violência doméstica, vamos focar em preconceito racial. Mesmo milhares de mulheres e crianças sendo violentadas, abusadas, mal tratadas diariamente.’ E vice-versa. Por outro lado, compreendo que é preciso aproveitar as brechas do sistema para se discutir o tema.
Há anos observo nos discursos das conversas informais, na mídia, no comércio a proliferação do preconceito do preconceito. Considere a argumentação de Fernando da Mota Lima, ex-professor da Universidade Federal de Pernambuco:

 Já houve quem observasse, não sem razão, que o brasileiro é portador do pior tipo de preconceito: o de acreditar que não tem preconceito. Por que é o pior? Porque a consciência do que somos, a consciência do que pensamos e sentimos é o primeiro passo necessário para que mudemos o que temos de pior. O preconceito – de raça, de gênero, de classe, de região e nacionalidade – está entre o que temos de pior. Ele alimenta, nas condições sociais rotineiras, as atitudes de discriminação e intolerância contra o outro objeto do preconceito. Nos tempos de crise, ele é instrumento pernicioso a serviço de ideologias e grupos sociais intolerantes e violentos.
Um exemplo da inconsciência do nosso preconceito extraído do balaio onde ajuntei uma infinidade: a senhora recifense, mãe de duas adolescentes louras e lindas, orgulhosa de dizer que não tinha preconceito racial. Um acaso feliz – ou infeliz, depende do ponto de vista – fez com que um dia as filhas se apaixonassem por dois negros. O mundo caiu sobre a consciência perplexa da mãe, que mobilizou todas as suas forças e recursos para suprimir a paixão inter-racial. Não obstante, continuou afirmando de pés juntos que não alimentava nenhum preconceito de cor, apenas não tolerava que suas filhas se apaixonassem por negros.

Mota Lima trata de uma das questões mais perigosas da sociedade atual. O cidadão afirma não ter preconceito por nenhum grupo minoritário, mas suas ações diante de uma situação em que há a oportunidade de miscigenação, seja ela racial, cultural, social ou outras, incomoda sua consciência imediatamente. E ainda assim alega não ser preconceituoso. Presenciei algo parecido quando uma conhecida ao ilustrar que uma família perfeita era constituída por pessoas brancas, loiras e de olhos azuis. Ao se dar conta do erro consciencioso que havia cometido encerrou a sentença com a célebre expressão: ‘Mas não sou preconceituosa. Inclusive tenho vários amigos negros.’ Quantas vezes não ouvimos essa forma de remediar as feridas do preconceito?! Não é tal comentário resultado do contínuo trabalho da mídia que mantêm a hegemonia cultural de influência europeia? Resultado das opiniões servidas prontas pelas ondas da TV e ‘empurradas goela abaixo’ da sociedade na ‘ideologia do embranquecimento’.
Há sim preconceito numa sociedade em que notícias e dados como estes são noticiados nos jornais, e se fazem necessárias campanhas humanitárias para se chamar atenção para a violência contra negros:

Em todo o país, 7 jovens são mortos a cada duas horas _ o tempo de uma sessão de cinema. São 82 jovens mortos por dia, 30 mil por ano, todos com idades de 15 a 29 anos. E, entre os jovens assassinados, 77% são negros (somando aqui os pretos e pardos, pelos critérios do IBGE).
Os números de homicídios são do Mapa da Violência, estudo realizado desde 1998 pelo sociólogo Julio Jacobo Weiselfisz com base em dados oficiais do Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde. A versão 2014 do Mapa traz as últimas informações disponíveis, referentes ao ano de 2012, e foi realizada em conjunto com a Secretaria Nacional de Juventude da Secretaria-Geral da Presidência da República e a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.
Em dez anos, de 2002 a 2012, os homicídios de jovens negros cresceram 32,4%; os de jovens brancos, 32,3%. Considerando a relação com a população, entre jovens negros a taxa de homicídios por cem mil habitantes cresceu 6,5%; entre jovens brancos caiu 28,6%.
 
Seriam tais dados apenas ‘coisas da cabeça’ de um negro, ou qualquer outro cidadão, que pensa a sociedade? Seria um tipo de paranoia? Se assim for, a indústria farmacêutica bioquímica está perdendo um grupo expressivo de transtornados mentais.
E quanto à cota para negros, é uma forma de perpetuar o preconceito? Uma forma de dizer que o negro não é capaz de conquistar seus ideais acadêmicos com ‘seu próprio esforço’? Participo da opinião do companheiro de longa data, Felipe Andrade, Historiador pela Universidade Federal de Juiz de Fora:

Sou a favor de cotas baseadas no critério de afrodescendência como medidas paliativas a fim de corrigir uma realidade de forte desigualdade socioeconômica e de discriminação racial praticada há pelo menos quatro séculos em nosso país. Veja bem, são medidas paliativas, ou quebra galho no bom português, pois o correto seria aprimorar os serviços de saúde, educação, previdência e ampliar a acessibilidade à cultura, lazer, mercado de trabalho a fim de melhor servir e incluir a todos. Com uma boa educação de base, cotas talvez não seriam necessárias.
Porém, enquanto isso não acontece, procuro enxergar as cotas como um pedido de desculpas incipiente dirigido aos negros pela sangrenta e horrível história de dominação, tortura e estigmatização escrita pelos portugueses e, infelizmente, até hoje pela nossa sociedade.
Não sou negro então não sou capaz de descrever os olhares tortos, piadas racistas, acusações levianas ou mesmo a desconfiança simplesmente baseada na cor da pele - mas sou capaz de imaginar. Eu mesmo parei pra refletir na questão das cotas para concursos públicos pois me peguei pensando "Isso não fere o princípio de igualdade? As cotas em universidades já não são o bastante?" Não. Nada é o bastante. Não se trata de tratamento desigual, afinal um candidato negro às vagas públicas é ferido pela desigualdade desde o berço, sendo rotulado, vigiado e perseguido pelos agentes do Estado como marginal, criminoso, pessoa inapta. Quantos negros foram aptos a se sobressair em meio a uma sociedade que lhes mostra o punho fechado, disposta a condená-los sob o pressuposto da culpabilidade implícita? Logo, um concorrente negro a vagas públicas não está em pé de igualdade comigo. Ele tem todo um contexto anterior que reduziu suas chances e que deve ser levado em conta. Contexto esse que se estende a seus antepassados, conforme discuti a pouco.’

É preciso amadurecer. A discussão é necessária, é uma assunto para se ter dentro de casa, pois a omissão fará seu filho, assim como muitos indivíduos que conheço, ter um discurso desarticulado que possibilita a sociedade impor suas ideologias de formas brutais e sutis, com um discurso falso de igualdade que na realidade não existe.
Igualdade é você poder entrar num restaurante e perguntar ao garçom, ou cozinheira, negro se eles estão ali porque querem ou por falta de opção e receber a resposta de que trabalham ali por questão de vocação, como destacou Taís Bianca. Igualdade é entrar num ambiente considerado ‘elegante’ e não ser observado com olhares preconceituosos porque é negro ou de classe social inferior. Igualdade é estar num ambiente cultural e não contar nos dedos quantos negros frequentam o lugar.  Não desejo mais foliar revistas e me sentir representado apenas em campanhas de Políticas Sociais do Governo. Não quero mais nossos atores e atrizes recebendo roteiros de personagens que na sinopse destaca que aquele papel é para um negro.
Criolo disse em certa entrevista que o que nos salvou foi ser um ‘ninguém’ por longo tempo de nossa história. Ou éramos ignorados, chicoteados ou encosto de porta, literal e figurativamente falando. E nos sobrou a beleza das artes, que para muitos é a fraqueza da alma. A cultura negra é uma das expressões mais fortes desse planeta. E novamente cito Mota Lima:

‘O preconceito alimenta-se antes de tudo de paixões humanas postas a serviço de interesses políticos e econômicos. O que nesse ponto destaco de positivo é o fato de que hoje nenhuma nação do Ocidente, aqui compreendidas suas extensões periféricas, adota políticas de Estado baseadas no preconceito ou qualquer outro tipo de intolerância. Essa é uma conquista que credito ao mito baseado numa perspectiva universalista, também à difusão do saber socioantropológico na sociedade contemporânea.’

Li há alguns anos um artigo que se iniciava com perguntas de autoanálise pertinentes. Desde então as faço rotineiramente: Será que conseguimos reconhecer em nós mesmos tendências para o preconceito? Por exemplo, tiramos conclusões a respeito da personalidade duma pessoa com base na cor da pele, nacionalidade, origem étnica ou tribo — embora não a conheçamos? Ou conseguimos avaliar cada pessoa segundo suas qualidades únicas? Treino-me diariamente. Aguardo ansiosamente o dia em que o preconceito terá sido eliminado para sempre.

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