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Prefiro fugir à regra. Não
gosto de expressar minha opinião a respeito de assuntos ‘polêmicos’, mas vez
por outra é necessário abrir mão de certos hábitos. Muito me incomoda ter um
tempo determinado para tratar qualquer assunto. É como se a sociedade, como um
todo, dissesse: ‘Não! Agora não é hora de falar sobre violência doméstica,
vamos focar em preconceito racial. Mesmo milhares de mulheres e crianças sendo
violentadas, abusadas, mal tratadas diariamente.’ E vice-versa. Por outro lado,
compreendo que é preciso aproveitar as brechas do sistema para se discutir o
tema.
Há anos observo nos
discursos das conversas informais, na mídia, no comércio a proliferação do
preconceito do preconceito. Considere a argumentação de Fernando da Mota Lima,
ex-professor da Universidade Federal de Pernambuco:
Já
houve quem observasse, não sem razão, que o brasileiro é portador do pior tipo
de preconceito: o de acreditar que não tem preconceito. Por que é o pior?
Porque a consciência do que somos, a consciência do que pensamos e sentimos é o
primeiro passo necessário para que mudemos o que temos de pior. O preconceito –
de raça, de gênero, de classe, de região e nacionalidade – está entre o que
temos de pior. Ele alimenta, nas condições sociais rotineiras, as atitudes de
discriminação e intolerância contra o outro objeto do preconceito. Nos tempos
de crise, ele é instrumento pernicioso a serviço de ideologias e grupos sociais
intolerantes e violentos.
Um exemplo da inconsciência
do nosso preconceito extraído do balaio onde ajuntei uma infinidade: a senhora
recifense, mãe de duas adolescentes louras e lindas, orgulhosa de dizer que não
tinha preconceito racial. Um acaso feliz – ou infeliz, depende do ponto de
vista – fez com que um dia as filhas se apaixonassem por dois negros. O mundo
caiu sobre a consciência perplexa da mãe, que mobilizou todas as suas forças e
recursos para suprimir a paixão inter-racial. Não obstante, continuou afirmando
de pés juntos que não alimentava nenhum preconceito de cor, apenas não tolerava
que suas filhas se apaixonassem por negros.
Mota
Lima trata de uma das questões mais perigosas da sociedade atual. O cidadão
afirma não ter preconceito por nenhum grupo minoritário, mas suas ações diante
de uma situação em que há a oportunidade de miscigenação, seja ela racial,
cultural, social ou outras, incomoda sua consciência imediatamente. E ainda
assim alega não ser preconceituoso. Presenciei algo parecido quando uma
conhecida ao ilustrar que uma família perfeita era constituída por pessoas
brancas, loiras e de olhos azuis. Ao se dar conta do erro consciencioso que
havia cometido encerrou a sentença com a célebre expressão: ‘Mas não sou
preconceituosa. Inclusive tenho vários amigos negros.’ Quantas vezes não
ouvimos essa forma de remediar as feridas do preconceito?! Não é tal comentário
resultado do contínuo trabalho da mídia que mantêm a hegemonia cultural de
influência europeia? Resultado das opiniões servidas prontas pelas ondas da TV
e ‘empurradas goela abaixo’ da sociedade na ‘ideologia do embranquecimento’.
Há
sim preconceito numa sociedade em que notícias e dados como estes são
noticiados nos jornais, e se fazem necessárias campanhas humanitárias para se
chamar atenção para a violência contra negros:
Em todo o país, 7 jovens são mortos a cada duas
horas _ o tempo de uma sessão de cinema. São 82 jovens mortos por dia, 30 mil
por ano, todos com idades de 15 a 29 anos. E, entre os jovens assassinados, 77%
são negros (somando aqui os pretos e pardos, pelos critérios do IBGE).
Os números de homicídios são do Mapa da Violência,
estudo realizado desde 1998 pelo sociólogo Julio Jacobo Weiselfisz com base em
dados oficiais do Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde.
A versão 2014 do Mapa traz as últimas informações disponíveis, referentes ao
ano de 2012, e foi realizada em conjunto com a Secretaria Nacional de Juventude
da Secretaria-Geral da Presidência da República e a Secretaria de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial.
Em dez anos, de 2002 a 2012, os homicídios de
jovens negros cresceram 32,4%; os de jovens brancos, 32,3%. Considerando a
relação com a população, entre jovens negros a taxa de homicídios por cem mil
habitantes cresceu 6,5%; entre jovens brancos caiu 28,6%.
Seriam
tais dados apenas ‘coisas da cabeça’ de um negro, ou qualquer outro cidadão,
que pensa a sociedade? Seria um tipo de paranoia? Se assim for, a indústria farmacêutica
bioquímica está perdendo um grupo expressivo de transtornados mentais.
E quanto
à cota para negros, é uma forma de perpetuar o preconceito? Uma forma de dizer
que o negro não é capaz de conquistar seus ideais acadêmicos com ‘seu próprio
esforço’? Participo da opinião do companheiro de longa data, Felipe Andrade,
Historiador pela Universidade Federal de Juiz de Fora:
‘Sou a favor de cotas baseadas no critério
de afrodescendência como medidas paliativas a fim
de corrigir uma realidade de forte desigualdade socioeconômica e de
discriminação racial praticada há pelo menos quatro séculos em nosso país. Veja
bem, são medidas paliativas, ou quebra galho no bom português, pois o correto
seria aprimorar os serviços de saúde, educação, previdência e ampliar a
acessibilidade à cultura, lazer, mercado de trabalho a fim de melhor servir e
incluir a todos. Com uma boa educação de base, cotas talvez não seriam
necessárias.
Porém, enquanto isso não
acontece, procuro enxergar as cotas como um pedido de desculpas incipiente
dirigido aos negros pela sangrenta e horrível história de dominação, tortura e
estigmatização escrita pelos portugueses e, infelizmente, até hoje pela nossa
sociedade.
Não sou negro então não
sou capaz de descrever os olhares tortos, piadas racistas, acusações levianas
ou mesmo a desconfiança simplesmente baseada na cor da pele - mas sou capaz de
imaginar. Eu mesmo parei pra refletir na questão das cotas para concursos
públicos pois me peguei pensando "Isso não fere o princípio de igualdade?
As cotas em universidades já não são o bastante?" Não. Nada é o bastante.
Não se trata de tratamento desigual, afinal um candidato negro às vagas
públicas é ferido pela desigualdade desde o berço, sendo rotulado, vigiado e
perseguido pelos agentes do Estado como marginal, criminoso, pessoa inapta.
Quantos negros foram aptos a se sobressair em meio a uma sociedade que lhes
mostra o punho fechado, disposta a condená-los sob o pressuposto da
culpabilidade implícita? Logo, um concorrente negro a vagas públicas não está
em pé de igualdade comigo. Ele tem todo um contexto anterior que reduziu suas
chances e que deve ser levado em conta. Contexto esse que se estende a seus
antepassados, conforme discuti a pouco.’
É preciso amadurecer. A
discussão é necessária, é uma assunto para se ter dentro de casa, pois a
omissão fará seu filho, assim como muitos indivíduos que conheço, ter um
discurso desarticulado que possibilita a sociedade impor suas ideologias de
formas brutais e sutis, com um discurso falso de igualdade que na realidade não
existe.
Igualdade é você poder
entrar num restaurante e perguntar ao garçom, ou cozinheira, negro se eles
estão ali porque querem ou por falta de opção e receber a resposta de que
trabalham ali por questão de vocação, como destacou Taís Bianca. Igualdade é
entrar num ambiente considerado ‘elegante’ e não ser observado com olhares
preconceituosos porque é negro ou de classe social inferior. Igualdade é estar
num ambiente cultural e não contar nos dedos quantos negros frequentam o lugar.
Não desejo mais foliar revistas e me
sentir representado apenas em campanhas de Políticas Sociais do Governo. Não
quero mais nossos atores e atrizes recebendo roteiros de personagens que na
sinopse destaca que aquele papel é para um negro.
Criolo disse em certa
entrevista que o que nos salvou foi ser um ‘ninguém’ por longo tempo de nossa
história. Ou éramos ignorados, chicoteados ou encosto de porta, literal e
figurativamente falando. E nos sobrou a beleza das artes, que para muitos é a
fraqueza da alma. A cultura negra é uma das expressões mais fortes desse
planeta. E novamente cito Mota Lima:
‘O preconceito alimenta-se antes de
tudo de paixões humanas postas a serviço de interesses políticos e econômicos.
O que nesse ponto destaco de positivo é o fato de que hoje nenhuma nação do
Ocidente, aqui compreendidas suas extensões periféricas, adota políticas de
Estado baseadas no preconceito ou qualquer outro tipo de intolerância. Essa é
uma conquista que credito ao mito baseado numa perspectiva universalista,
também à difusão do saber socioantropológico na sociedade contemporânea.’
Li há alguns anos um
artigo que se iniciava com perguntas de autoanálise pertinentes. Desde então as
faço rotineiramente: Será que conseguimos reconhecer em nós mesmos tendências
para o preconceito? Por exemplo, tiramos conclusões a respeito da personalidade
duma pessoa com base na cor da pele, nacionalidade, origem étnica ou tribo — embora
não a conheçamos? Ou conseguimos avaliar cada pessoa segundo suas qualidades únicas?
Treino-me diariamente. Aguardo ansiosamente o dia em que o preconceito terá
sido eliminado para sempre.
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