Semi-analfabeta, negra e favelada, Carolina foi mãe de três filhos e nunca se casou.
Apesar de tais condições, a paixão dela pela escrita e leitura
foi tamanha que passou a dividir seu tempo entre catar papel, cuidar dos filhos e escrever.
Lançado pela Livraria Francisco Alves em agosto de 1960,
Quarto de Despejo ganhou oito edições no mesmo ano,
tendo mais de 100 mil exemplares vendidos na época.
Carolina Maria de Jesus nasceu a
14 de Março de 1914 em Sacramento, estado de Minas Gerais, cidade onde viveu sua infância e adolescência.
Foi filha de negros que, provavelmente, migraram do Desemboque para Sacramento quando da mudança da economia da
extração de ouro para as atividades agro-pecuárias.
Descoberta pelo jornalista
Audálio Dantas,
repórter da Folha da Noite, Carolina teve suas anotações publicadas em
1960 no livro Quarto de Despejo, que vendeu mais de cem mil exemplares.
A obra foi prefaciada pelo escritor italiano Alberto Moravia e traduzida para 29 idiomas. Em 1961, o livro foi adaptado como peça teatral por Edi Lima e encenado no
Teatro Nídia Lícia, no mesmo ano.
Sua obra também virou filme, produzido pela Televisão Alemã, que
utilizou a própria Carolina de Jesus como protagonista do longa-metragem
Despertar de um sonho (inédito no Brasil).
Quanto a sua escolaridade em Sacramento, provavelmente foi matriculada em 1923, no
Colégio Allan Kardec, primeiro Colégio Espírita do Brasil, fundado em
31 de Janeiro de 1907, por Eurípedes Barsanulfo. Nessa época, as crianças pobres da cidade eram
mantidas no Colégio através da ajuda de pessoas influentes.
A benfeitora de Carolina Maria de Jesus foi a senhora Maria Leite Monteiro de Barros, pessoa para quem a mãe de Carolina
trabalhava como lavadeira. No Colégio Allan Kardec Carolina estudou pouco mais de dois anos.
Toda sua educação formal na leitura e escrita advêm deste
pouco tempo de estudos.
Mesmo diante todas as
mazelas, perdas e discriminações
que sofreu em Sacramento, por ser negra e pobre, Carolina revela
através de sua escritura a importância do testemunho como meio de
denúncia sócio-política de uma
cultura hegemônica que exclui aqueles que lhe são alteridade.
A obra mais conhecida, com tiragem inicial de
dez mil exemplares esgotados na primeira semana, e traduzida em 13 idiomas nos últimos 35 anos é
Quarto de Despejo. Essa obra resgata e delata uma face da
vida cultural brasileira quando do início da modernização da cidade de
São Paulo e da criação de suas favelas. Face cruel e perversa, pouco conhecida e muito dissimulada,
resultado do temor que as elites vivenciam
em tempos de perda de hegemonia. Sem necessidade de precisarem as áreas
de onde vem os perigos, a elite que resguarda hegemonias não suaviza
atos e conseqüências
quando ameaçadas por “gente de fora” (leia-se, “gente de baixo”). Essa
literatura documentária de contestação, tal como foi conhecida e nomeada
pelo jornalismo de denúncia dos anos 50-60, é hoje a
literatura das vozes subalternas que enunciam-se, a partir dos anos 70, pelos testemunhos narrativos femininos.
Segundo pesquisas do
professor Carlos Alberto Cerchi,
Quarto de Despejo inspirou diversas expressões artísticas como a letra
do samba “Quarto de Despejo” de B. Lobo; como o texto em debate no livro
“Eu te arrespondo Carolina” de Herculano Neves; como a adaptação
teatral de Edy Lima; como o filme realizada pela
Televisão Alemã, utilizando a própria Carolina de Jesus como protagonista do filme
“Despertar de um sonho” (ainda inédito no Brasil); e, finalmente, a adaptação para a série
“Caso Verdade” da Rede Globo de Televisão em
1983.
Carolina Maria de Jesus com Clarice Lispector.
Livro autografado por Carolina Maria de Jesus
Em São Paulo, foi empregada doméstica, auxiliar de enfermagem, artista de circo.
A escritora deu entrevistas, ganhou prêmios, apareceu na TV. Deixou a favela, recebeu as chaves da cidade. Mas seus livros seguintes não tiveram a mesma repercussão. Logo seria esquecida. Já não era favelada, mas morreu no barraco de um dos filhos
O livro Quarto de despejo vendeu 10 mil exemplares em uma semana. Contradição: no dia do lançamento, teve de catar papel para garantir comida.
Em maio de 1958 o repórter Audálio Dantas chega à favela para cobrir a inauguração de um parque infantil. Fica intrigado com a mulher (Carolina Maria de Jesus, no caso) que ameaça bêbados sobre os brinquedos: “Se não saírem daí, vou colocá-los em meu livro!”
A obra de Carolina Maria de Jesus é um referencial importante para os Estudos Culturais, tanto no Brasil como no exterior.
Carolina foi mãe de três filhos: João José de Jesus, José Carlos de Jesus e Vera Eunice de Jesus Lima.
Faleceu em 13 de Fevereiro de 1977, com 62 anos de idade e foi sepultada no Cemitério da Vila Cipó, cerca de 40 Km do centro de São Paulo.
“Quarto de Despejo” antecipou o gênero
“depoimento” e “testemunho” que, no final do século XX, tanto encanta
leitores e estudiosos da literatura. No caso dos diários de Carolina, no
entanto, ao desejo de conhecer a vida alheia soma-se um outro fator de
interesse: o cotidiano que seu livro devassa é muito distinto daquele em
que vivem seus leitores. Já pelo título da obra de estréia, o leitor
percebe que vai adentrar lugares aos quais não está habituado.
Promete e traça uma cartografia de espaços
degradados, relacionados a restos, a desordem, a coisas que ninguém mais
quer. A própria Carolina desvela a metáfora que serve de título ao seu
livro:
|
(…)
em 1948, quando começaram a demolir as casas térreas para construir os
edifícios, nós, os pobres que residíamos nas habitações coletivas, fomos
despejados e ficamos residindo debaixo das pontes. É por isso que eu
denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os
pobres, somos os trastes velhos. |
A vontade de conhecer e entender o outro, na
busca por um mundo mais justo manifesta-se com freqüência nos anos
sessenta, talvez na esteira da vitoriosa revolução socialista cubana.
Também nessa época intensifica-se o movimento feminista, passando as
mulheres a exigir condições de vida e de trabalho iguais às dos homens.
Veja na cronologia alguns eventos ligados ao feminismo. Ainda que muito
tenuemente, começa-se a pensar que, embora sejamos todos diferentes
(mulheres e homens, negros e brancos, brasileiros e europeus) devemos
ser todos tratados de forma igual, devemos ter todos os mesmos direitos e
oportunidades.
Quando consegue algum alimento, a narradora reflete sobre sua condição de pessoa expulsa do mundo humano:
“Quando eu levava feijão pensava: hoje eu estou parecendo gente bem, vou cozinhar feijão. Parece até um sonho!”
A miséria que presencia é tão chocante que Carolina acha que alguém poderia não acreditar no que conta:
“…. Há existir alguém que lendo o que eu escrevo dirá… isto é mentira! Mas, as misérias são reais.”
Com grande senso crítico, a autora destaca as visitas do padre à favela:
“De manhã o padre veio dizer missa. Ontem ele veio com o carro capela e
disse aos favelados que eles precisam ter filhos. Penso: porque há de
ser o pobre quem há de ter filhos ¬ se filhos de pobre tem que ser
operário? (…) Para o senhor vigário, os filhos de pobre criam só com
pão. Não vestem e não calçam.”
O contraste entre a favela e a cidade é percebido com acuidade e senso crítico por Carolina:
“Quando eu vou na cidade tenho a impressão de que estou no paraíso. Acho
sublime ver aquelas mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão
diferentes da favela. As casas com seus vasos de flores e cores
variadas.Aquelas paisagens há de encantar os visitantes de São Paulo,
que ignoram que a cidade mais afamada da América do Sul está enferma.
Com as suas ulceras. As favelas.”
Fatos corriqueiros como brigas entre marido e
mulher, entre as mulheres e os bêbados, a presença da Rádio Patrulha,
mortes por intoxicação com alimentos putrefatos são narrados com
detalhes por Carolina:
“Eu já estou tão habituada a ver brigas que já não impressiono.
Despertei com um bate-fundo perto da janela. Era a Ida e a Amália.A
briga começou lá na Leila. Elas não respeitam nem a extinta. O Joaquim
interviu pedindo para respeitar o corpo. Elas foram brigar na rua.”
Ao olhar atento da narradora nada escapa:
“…. Nas favelas, as jovens de 15 anos permanecem até a gora que elas
querem. Mescla-se com as meretrizes, contam suas aventuras [...] Há os
que trabalham. E há os que levam a vida a torto e a direito.As pessoas
de mais idade trabalham, os jovens é que renegam o trabalho. Tem as
mães, que catam frutas e legumes nas feiras. Tem as igrejas que dá pão.”
Sempre em atrito com os vizinhos por causa dos filhos, Carolina diz:
“ Os meus filhos estão defendendo-me. Vocês são incultas, não pode
compreender. Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo
que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem. Eu quero escrever o
livro, e vocês com estas cenas desagradáveis me fornece os argumentos.”
Carolina demonstra ser uma pessoa exatamente
atualizada em relação ao que se passa na vida política do país, o que se
comprova pelas constantes referências aos políticos em destaque na
época, como Carlos Lacerda, Jânio Quadros, Adhemar de Barros e Juscelino
Kubitschek.A exploração da boa-fé do povo pelos políticos na época de
eleições, as visitas dos candidatos à favela, os pequenos agrados e as
promessas não cumpridas são registradas pela narradora de forma crítica e
consciente:
“…. Quando um político diz nos seus discursos que está ao lado do povo,
que visa incluir-se na política para melhorar as nossas condições de
vida pedindo o nosso voto prometendo congelar os preços, já está ciente
que abordando este grave problema ele vence nas urnas. Depois
divorcia-se do povo. Olho o povo com os olhos semicerrados. Com um
orgulho que fere a nossa sensibilidade.”
Sobre sua obra, Carolina afirma:
“Escrevo a miséria e a vida infausta dos favelados. Eu era revoltada,
não acreditava em ninguém. Odiava os políticos e os patrões, porque o
meu sonho era escrever e o pobre não pode ter ideal nobre. Eu sabia que
ia angariar inimigos, porque ninguém está habituado a esse tipo de
literatura. Seja o que Deus quiser. Eu escrevi a realidade.”
- Gregori
Fonte:
Livres Pensadores
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