"Os motoristas
americanos e europeus impressionam
pela educação. Não por serem bonzinhos ou melhores
do que nós, mas porque temem a lei"
pela educação. Não por serem bonzinhos ou melhores
do que nós, mas porque temem a lei"
Os anjos da morte
estão cansados de nos recolher, a nós que nos
matamos ou somos assassinados no tráfego das estradas,
cidades, esquinas deste país. Os anjos da morte estão
exaustos de pegar restos de vidas botadas fora. Os anjos da
morte andam fartos de corpos mutilados e almas atônitas.
Os anjos da morte suspiram por todo esse desperdício.
Ilustra��o
At�mica Studio![]() |
Não sei se as propagandas que tentam aos poucos aliviar essa tragédia ajudam tanto a preservar vidas quanto as intermináveis, ricas e coloridas propagandas de cerveja ajudam a beber mais e mais e mais, colaborando para uma parte dessa carnificina. Mas sei que estou no limite. Não apenas porque abro jornais, TV e computador e vejo a mortandade em andamento, mas porque tenho observado as coisas em questão. Recentemente, dirigindo numa auto-estrada, percebi um motorista tentando empurrar para o canteiro central um carro que seguia à minha frente na faixa esquerda, na velocidade adequada ao trajeto. Chegava provocadoramente perto, pertinho, pertíssimo, quase batia no outro, que se desviava um pouco lutando para manter-se firme no seu trajeto sem despencar.
Logo adiante, pára
tudo, um acidente grave. O motorista do carro assediado, um
senhor de cabelos brancos, desce, vai até o carro do
imbecil agora parado à sua frente, fala, gesticula, numa
justa ira. Depois volta ao carro, em que a família o
espera. Recomeça o tráfego, perco os dois de vista.
Mas fica em minha memória um motorista boçal tentando
fazer um inocente perder o controle do carro. Era inconseqüente
por natureza, era um agressivo perigoso, ou estaria simplesmente
alcoolizado às 8 da manhã?
Outro dia observei
na televisão um motorista, apanhado a quase 200 por hora,
sendo entrevistado ainda dentro do carro. Fiquei impressionada
com seu sorriso idiota, o arzinho arrogante, o jeito desafiador
com que encarou a câmera num silêncio ofendido,
quando perguntado sobre as razões da sua insanidade.
Todo o seu ar era de quem estava coberto de razão: a
lei e a segurança dos outros e a dele próprio
nada valiam diante da sua onipotência.
Atenção:
os jovens são – em geral, mas não sempre
– mais arrojados, mais imprudentes, têm menos experiência
na direção. Portanto, são mais inclinados
a acidentes, bobos ou fatais, em que a gente mata e morre. Mas
há um número impressionante de adultos –
mais homens do que mulheres, diga-se de passagem, porque talvez
sejam biologicamente mais agressivos – cometendo loucuras
ao dirigir, avançando o sinal, quase empurrando o veículo
da frente com seu pára-choque, não cedendo passagem,
ultrapassando em locais absurdos sem a menor segurança,
bebendo antes de dirigir, enfim, usando o carro como um punhal
hostil ou um falo frustrado.
Cada um se porta como
quer – ou como consegue. Isso vem do caráter inato,
combinado com a educação recebida em casa. Quando
esse comportamento ultrapassa o convívio cotidiano e
pode mutilar pais de família, filhos e filhas amados,
amigos preciosos, ou seja lá quem for, então é
preciso instaurar leis férreas e punições
comparáveis. Que não permitam escapadelas nem
facilitem cometer a infração com branda cobrança.
Que não admitam desculpas e subterfúgios, não
premiem o erro, não pequem por uma criminosa omissão.
Precisamos em quase
tudo de autoridade e respeito, para que haja uma reforma generalizada,
passando da desordem e do caos a algum tipo de segurança
e bem-estar. Os motoristas americanos e europeus impressionam
pela educação. Não por serem bonzinhos
ou melhores do que nós, mas porque temem a lei, a punição,
a cassação da carteira, a prisão, por coisas
que aqui entre nós são consideradas apenas "normais",
meros detalhes, "todo mundo faz assim".
Autoridade justa,
mas muito rigorosa, é o que talvez nos deixe mais lúcidos
e mais bem-educados: em casa, na escola, na rua, na estrada,
no bar, no clube, dentro do nosso carro. E os fatigados anjos
da morte poderão, se não entrar em férias,
ao menos relaxar um pouco.
- Lya Luft é escritora
Fonte: Revista VEJA - Ponto de Vista
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