quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Órfão de geração

Foto: ÓRFÃOS DE GERAÇÃO
Arte de Juan Sánchez-Cotán

Fabrício Carpinejar

E quando você descobre que seu pai é racista, o que fazer?

Quando você percebe que seu pai acha absolutamente normal chamar alguém de macaco, que seu pai acredita que negro é preto, que é absolutamente contra cotas, onde colocar seu desespero?

Aquele pai amoroso, afetivo, preocupado, atento, dedicado, que trabalhou o tempo inteiro para que pudesse viver bem, tem um outro por dentro e é um outro por fora. 

Qual o desencantamento quando você entende que ele é seu pai biológico, mas não é seu pai ideológico, muito menos seu pai espiritual, que não concorda com nenhuma de suas convicções sociais?

Ele é uma aberração para a sociedade resmungando daquele jeito no almoço. Não difere de um nazista defendendo a discriminação enquanto procura retirar com os dentes a carne do osso da costela.  

Não usa guardanapo para falar, assim como usa para comer. 

Eu não imagino o quanto o filho deve sofrer. Não é somente decepção, é uma humilhação interminável. 

Pela distância de geração, não tem como convencê-lo. Ele se considera pai e superior, ele se considera pai e sábio, ele se considera velho e esclarecido. Grita e gesticula suas verdades equivocadas como se fossem naturais. 

Espera que obedeça e concorde, mas é impossível ser indiferente. 

Você apenas não consegue encaixar aquele pai educado e gentil com aquele pai preconceituoso e criminoso. 

Mas são a mesma pessoa. A mesma gente. 

Você tem amigos negros, já teve namoradas negras, o preconceito dói em si como se arrancasse sua pele, e seu pai encarna o que mais abomina: o ódio burro, a raiva escravocrata.

Como continuar sendo seu filho? Como cortar o cordão umbilical do abraço? 

Não sei a resposta. Não sei o que dizer.

É um desencanto maior do que a morte.

Como separar os momentos felizes paternos das palavras coléricas e espantosamente injustas contra toda uma cultura? 

Como falar depois disso que seu pai é ótimo, é sensível, é perfeito? Como escrever cartões elogiando sua emoção? 

É igual com a mãe que é homofóbica.

E homofóbica quando o próprio filho é homossexual. Não tenho ideia o quanto sangra alguém rejeitado pela família. Alguém que precisa disfarçar seu temperamento, sua escolha afetiva, seus namorados, para não se opor à monstruosidade caseira. 

Aquela mãe que colocou você no colo, que cativou sua adoração por histórias, que ensinou a cordialidade, que é cúmplice e delicada, vira uma fascista ao falar de gays. Confia piamente que sexo e amor só podem ser realizados entre homem e mulher, que a homossexualidade é doença, que a homossexualidade tem que ser tratada pela psiquiatria. 

É tão comum testemunhar filhos que amam seus pais, mas que não tem como amar o que seus pais acreditam. O que fazer? Como prantear essa distância filial? Como enterrar a admiração pelas pessoas mais importantes de sua vida?

Arte de Juan Sánchez-Cotán


Fabrício Carpinejar

E quando você descobre que seu pai é racista, o que fazer?

Quando você percebe que seu pai acha absolutamente normal chamar alguém de macaco, que seu pai acredita que negro é preto, que é absolutamente contra cotas, onde colocar seu desespero?

Aquele pai amoroso, afetivo, preocupado, atento, dedicado, que trabalhou o tempo inteiro para que pudesse viver bem, tem um outro por dentro e é um outro por fora.

Qual o desencantamento quando você entende que ele é seu pai biológico, mas não é seu pai ideológico, muito menos seu pai espiritual, que não concorda com nenhuma de suas convicções sociais?

Ele é uma aberração para a sociedade resmungando daquele jeito no almoço. Não difere de um nazista defendendo a discriminação enquanto procura retirar com os dentes a carne do osso da costela.

Não usa guardanapo para falar, assim como usa para comer.

Eu não imagino o quanto o filho deve sofrer. Não é somente decepção, é uma humilhação interminável.

Pela distância de geração, não tem como convencê-lo. Ele se considera pai e superior, ele se considera pai e sábio, ele se considera velho e esclarecido. Grita e gesticula suas verdades equivocadas como se fossem naturais.

Espera que obedeça e concorde, mas é impossível ser indiferente.

Você apenas não consegue encaixar aquele pai educado e gentil com aquele pai preconceituoso e criminoso.

Mas são a mesma pessoa. A mesma gente.

Você tem amigos negros, já teve namoradas negras, o preconceito dói em si como se arrancasse sua pele, e seu pai encarna o que mais abomina: o ódio burro, a raiva escravocrata.

Como continuar sendo seu filho? Como cortar o cordão umbilical do abraço?

Não sei a resposta. Não sei o que dizer.

É um desencanto maior do que a morte.

Como separar os momentos felizes paternos das palavras coléricas e espantosamente injustas contra toda uma cultura?

Como falar depois disso que seu pai é ótimo, é sensível, é perfeito? Como escrever cartões elogiando sua emoção?

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É tão comum testemunhar filhos que amam seus pais, mas que não tem como amar o que seus pais acreditam. O que fazer? Como prantear essa distância filial? Como enterrar a admiração pelas pessoas mais importantes de sua vida?

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