domingo, 28 de setembro de 2014

Água-marinha

Imagem: Reprodução



 por Miguel de Sousa-Aguiar

Uma tarde chuvosa, cinzenta, a única que me restou para matar as saudades do meu canto. Uma tarde só minha, de volta ao lar, aproveitando o silêncio da mata. Uma tarde de vidraças salpicadas de chuva e piscinas azuis na televisão. A Austrália mostra ao mundo sua civilização e a gente tem mais é que aplaudir a beleza do espetáculo.
Assisto às competições da natação, nas Olimpíadas, e a memória me leva de volta ao Vasco da Gama, meu pai com o cronômetro na mão, no fim da raia, gritando palavras de incentivo. Ele desejava que eu vencesse e externava sua vontade com o olhar febril, à minha espera no fim da faixa azul. Mas não eram essas as minhas vitórias. Não era esse o meu dom. Sempre em segundo lugar. Ou terceiro. Nunca aquele que galgaria o mais alto lugar do pódio. Eu engolia o ar, lutando contra a água que ia se tornando mais e mais pesada, à medida que a competição avançava. Com o canto do olho, via meu adversário avançar na raia ao lado, em direção à vitória e, embora isso frustrasse as expectativas familiares, não eram essas as vitórias que eu desejava intimamente. A decepção de meu pai pelas derrotas escorregava pelo meu corpo. Nunca me importei de verdade. Nunca fiz nenhum esforço para vencer.
Na televisão desfilam chineses, australianos e romenos. Americanos, sul africanos e russos. O mundo todo na piscina de São Januário, já faz muito tempo. A penumbra do vestiário e o túnel que conduzia ao parque aquático – no ar o cheiro de café torrado, talvez. O aroma do açúcar na refinaria, o sabão português, o cloro que invadia as narinas, esverdeava os cabelos e deixava os olhos em fogo. Um mundo de aromas é o que me apresenta a memória. O perfume do sabonete de pinho, uma forma verde e arredondada, de que meu pai gostava muito. É esse o cheiro das primeiras descobertas de prazer, do corpo sendo assuntado, tocado, acarinhado. O cheiro das essências que a memória guardou com cuidado.
Os aromas são liberados e vão se encadeando, saindo de alguma nebulosa do cérebro. O cheiro de São Cristóvão, nas manhãs de inverno. Correr em volta da piscina, ginástica no solo e, depois, o bando ruidoso ia para a água. Metros e metros em diferentes estilos, instruções, tábuas, borbulhas e silêncio. A perna doendo, o braço doendo e a cabeça muito longe dali. Sempre longe dali. Eu não gostava daquilo, não era o meu melhor. Nunca entendi muito o porquê, se é que há um por que. Mas aí são questões metafísicas demais para uma crônica. Antes dos questionamentos, há o trajeto da sede de São Januário até a casa de minha avó, subindo a Rua General Padilha. Os cabelos molhados, a mochila nas costas, as casas do tempo do império. Na minha infância, São Cristóvão ainda se agarrava a seu passado de glória. A imagem do cortiço imenso que ficava no caminho, logo antes da rua de minha avó. Um bando de gente barulhenta olhando o dia desaparecer por entre os dedos, sentados no muro baixo. Uma mulher cansada que estendia roupas no longo varal comunitário. Pão com manteiga na hora do lanche. Um relógio que marcava as horas, com uma seriedade assustadora.
Na televisão, outros troféus são distribuídos, bandeiras içadas e o hino americano se faz ouvir, enquanto a moça loura esbugalha os olhos de emoção. Pela manhã, nossa bandeira tremulou, com a medalha de prata no judô e o italiano que ganhou o ouro chorou feito criança ao ver o pavilhão tricolor ser içado à glória olímpica. Mediterrâneos. Lágrimas e sentimento. É disso que somos feitos. Essa é a nossa matéria prima, eu penso.
Todo o dia se passou dentro da água marinha brilhante, os corpos com roupas futuristas, tubarões e sereias. Fiquei deitado na cama, acompanhando a transmissão, lembrando de outras marolas, do corpo curvado antes do tiro da largada. Acabei cochilando e sonhei com aqueles dias de verão, quando eu terminava o treino e caminhava até a Avenida Brasil, seguindo o muro branco do cemitério do Caju, o uniforme do ginásio, o escudo preso no bolso da camisa.
Será que eu já sabia?
Será que tudo aquilo que eu sonhava, dentro da água-marinha onde eu nadava, era apenas uma lembrança do futuro?
Apenas uma lembrança do futuro. Como um eco.

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