segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Vidas Secas


Pesquisa mostra que preferimos levar choques a passar 15 minutos com nossos pensamentos. Nada ilustra melhor a secura dos tempos. 
 
 
 
 
a persistência da memóra
Reprodução do quadro "A Persistência da Memória", pintura de 1931 de Salvador Dalí



Cabeça vazia é a oficina do diabo, dizia a minha vó e a vó de todos os meus amigos de infância. Ter tempo demais, sem exatamente ter o que fazer, é a mola propulsora para as crianças pintarem as paredes com pasta de dente, plantarem ovos no quintal ou roubarem os cigarros do pai.
Quando adultos, a lei e a ordem nos impedem de tapear o tempo com os velhos recursos infantis, e por isso preferimos tapeá-lo jurando não termos tempo para nada – ao menos para começar as tarefas adiadas desde a adolescência, como começar a ler Em Busca do Tempo Perdido.
Mas a verdade é que temos tempo de sobra. Temos tempo demais. Por isso estamos sempre conectados e em busca de listas salvadoras sobre as dez coisas que não podemos morrer sem fazer, conhecer, ouvir, lembrar ou esquecer.
Tempos atrás, perdíamos o sono e nos deparávamos à noite com nosso maior inimigo: o silêncio. Nada contra o silêncio, mas é ele, e nada mais, o maior delator de nosso fantasma mais primitivo: a consciência de que temos tempo de sombra, temos tempo demais, e não sabemos o que fazer com ele quando é noite, estão todos dormindo e as ruas, imersas em silêncio. Diante da noite, não há meio-termo entre matar ou morrer. Antigamente assaltávamos a geladeira. Ou ligávamos a TV para assistir ao Corujão. Ou escrevíamos cartas a amantes ou desafetos num impulso de empolgação que se desmancharia nas primeiras luzes do dia e da razão.
Hoje vamos à internet. Ali, encontramos uma legião de insones armados com facões e outros objetos pontiagudos para matar, estraçalhar, estripar o tempo de sobra. O tempo, delatado pelo silêncio, é nosso maior delator: não temos nada de bom para pensar. Por isso a paz não nos interessa. Ela nos leva ao silêncio, que nos leva a nós mesmos, e esse encontro é não só indesejado: é insuportável.
No livro Vidas Secas, Graciliano Ramos descreve uma cena em que Fabiano, o sertanejo do romance, perde uma aposta para o Soldado Amarelo. Quando percebe, está só, sentado na sarjeta, falido, bêbado e sem argumento para explicar em casa que o dinheiro para os mantimentos fora gasto em finalidades menos nobres. É a chegada ao inferno sem escaladas: em silêncio, Fabiano busca um resquício de bom pensamento para se acalmar. Em vão, conclui: a vida seria mais suportável se houvesse ao menos uma boa lembrança. Ele não tinha. Sua vida era seca. Infrutífera. Vulnerável. Como ele.
Em tempos de secura do ar, de reservatórios, de ideias ou desculpas convincentes sobre nossas faltas, eu deveria voltar a Graciliano Ramos, mas confesso que ando ocupado demais matando o tempo que juro não ter. Todos os meus objetos pontiagudos estão empenhados a matar o tempo na internet, mais especificamente no Facebook, espécie de redutor do muro que antes separava o que sentíamos e o que pronunciávamos.
Com ele, não faz o menor sentido ter uma ideia e não dividi-la. Não compartilhá-la. Não lançá-la para ser curtida. As ideias trancafiadas nos pesam: elas nos levam ao silêncio e às desconfianças, entre elas a de que não são originais, não valem ser ditas, não valem a atenção, não valem uma nota, não valem um post. Tarde demais: quando pensamos em dizer, já dissemos. Em conjunto, essa produção industrial de bobagens e reduções explícitas da realidade replicadas na rede nos dão a sensação de preenchimento. De tempo encurtado. De tempo útil. De vida bem vivida.
Vai ver é por isso que, em um estudo recente publicado na revista Science, as pessoas diziam preferir causar dor a si mesmas do que passar 15 minutos em um quarto sem nada para fazer além de pensar. No experimento, os cientistas das Universidades da Virgínia e de Harvard confinaram cerca de 200 pessoas em um quarto sem celular nem material para ler ou escrever e concluiu: mais de 57% das pessoas acharam difícil se concentrar; 80% disseram que seus pensamentos vagaram; metade achou a experiência desagradável. E, o mais estarrecedor: dois terços, sem ter o que fazer diante do silêncio, resolveram se entreter dando choques em si mesmos – um deles estraçalhou o próprio tédio com 190 choques. Nada poderia ser mais revelador dos nossos dias.
Pois ontem passei uma hora e quarenta minutos parado num ponto de ônibus à espera de um ônibus que não veio. Passaria uma hora e quarenta minutos me autoimolando se não fosse meu celular, que tanto relutei a conectar à internet. Foram quase cem minutos contatando meio mundo que me desse uma palha de conversa, em aplicativos de mensagem instantânea, sobre a vida, sobre a seca, sobre o tempo que nos resta e não concede tempo para nada, nem para ler os livros e as revistas que apodreciam em conjunto na minha mochila.
Se quer saber a dimensão do tempo, fique um minuto em silêncio, diziam os sábios, que talvez não suportassem passar 15 minutos sem conferir as últimas mensagens no celular a apitar nos bolsos das melhores famílias. Os meus vibram e apitam mesmo quando estão vazios. Sintomas da abstinência, manifestada toda vez que coloco o celular para carregar e me lembro de que nossas vidas pedem barulho e transbordamento o tempo todo. Elas estão secas demais para suportar 15 minutos de silêncio.


Fonte: Carta Capital

domingo, 10 de agosto de 2014

MATURIDADE x INSANIDADE


   Por Fabíola Simões
                                              

                                                 
"Dizem que sou louco por pensar assim
Se eu sou muito louco por eu ser feliz
Mas louco é quem me diz
E não é feliz..."

Imagem: Reprodução




[...]

 Vivemos em busca de aprovação, de um olhar "superior"que nos diga que o caminho que trilhamos está certo, que é isso o que esperam de nós. Mas será que cumprindo o "combinado" nos tornamos pessoas mais felizes e realizadas?  Seria insano questionar o projeto e recalcular a rota?

[...]

Desconstruindo a perfeição nos tornamos mais humanos, mais próximos uns dos outros.

 Dando o grito de liberdade nos aceitamos como somos, nos perdoamos, deixamos de ter um olhar moralista sobre a identidade escondida dentro de nós, descobrimos que não somos culpados pela maioria das misérias à nós atribuídas. Enfim amadurecemos.

 Amadurecemos quando nos libertamos da aprovação alheia para nos sentirmos felizes, confortáveis ou protegidos;

Quando deixamos de ter medo de nossas fragilidades e aceitamos olhar para elas do mesmo modo que nos vangloriamos de nossas virtudes;

 Amadurecemos quando rompemos nossas defesas e nos descobrimos humildes, admitindo  que ninguém é 100% imaculado, algumas enfermidades fazem parte do caminho e isso é perfeitamente aceitável;

 Quando enfrentamos nossas provações de frente, não nos censuramos nem disfarçamos nosso inferno;

Amadurece quem não se vitimiza em busca de atenção, nem se omite pra manter sua reputação;

Amadurecemos quando aprendemos que a vida é composta de acertos e desacertos e nos permitimos errar. E depois de reparar nossas faltas, nos perdoamos e seguimos em frente;

Amadurecemos quando começamos a trilhar um caminho de transparência e fidelidade aos nossos sentimentos;

 Quando preservamos nossa própria natureza, não poluímos a nós mesmos agindo de acordo com as "normas vigentes" nem aceitamos sermos rotulados;

Amadurecemos quando entendemos que somos os únicos responsáveis por nossas vidas e deixamos de culpar os outros por nossos fracassos, frustrações ou sonhos não realizados;

Quando entendemos que não adianta depositar nossas expectativas em ninguém,  cada pessoa enxerga a vida à sua maneira e não é certo cobrar algo que tem valor relativo para cada um;

Amadurecemos quando deixamos de ter  preconceitos contra nossa própria história, assumimos nossas imperfeições ou o que se fez imperfeito em nós e paramos de apontar no outro aquilo que tentamos esconder em nós;

 Amadurecemos quando entendemos que a vida é um conjunto de bem e mal, certo e errado, belo e feio, alegrias e tristezas, e passamos a conviver bem com os 2 lados, sem negociar uma escolha definitiva;

Amadurecemos quando deixamos de ser tão exigentes , quando nos permitimos transgredir e ser menos certinhos, quando finalmente aprendemos a dizer "não" (...);

 Amadurecemos quando descobrimos que a alegria verdadeira tem um antagonista dentro de nós, que ninguém é 100% feliz o tempo todo, e que isso é perfeitamente aceitável;

Amadurecemos quando percebemos que o sofrimento faz parte do caminho e que ele é bem vindo também, quando nos ensina o sentido da paciência e da aceitação diante das demoras e revezes da vida;

Amadurecemos quando compreendemos que não há lógica nem explicação pra tudo, que  o importante é ter menos controle e mais diversão; quando percebemos que a maturidade flerta com a "INSANIDADE"...

 Amadurece quem entende que a vida é como uma enorme colcha de retalhos em que os retalhos bonitos, limpos e de cores vivas estão firmemente atados aos retalhos feios, sujos e gastos pelo tempo. Certamente desejamos possuir e expôr uma colcha perfeita , agradável aos olhos e aconchegante. Mas para isso teríamos que mostrar apenas metade da colcha_ou 70% dela, vá lá.
Porém, quando entendemos que a beleza da colcha está no contraste entre o belo e o feio, o novo e o velho, o limpo e o sujo... encontramos a paz que deriva do perdão e da verdadeira auto estima. Deixamos de julgar tanto_a nós e aos outros_, relaxamos com nossas histórias, fazemos as pazes com nossos fantasmas.

 Nos descobrimos livres, sem dívidas.

 Encontra a felicidade aquele que entende que não adianta mostrar a colcha por partes nem camuflar os retalhos feios. O segredo é olhar para eles com carinho e aceitá-los como parte do todo. E conviver bem com isso, pois no final, usando a colcha inteira estaremos bem mais aquecidos do que se a usarmos só pela metade.

sábado, 9 de agosto de 2014

Entrevista sobre o feio



Fonte: Estadão
Imagem: Reprodução


Conversa com Paulinha Inhotim. Uma mulher linda – que só namora com feios.


Maria Paula é linda de marré, marré, marré. Por isso recebeu o apelido de Paulinha Inhotim. Sim, ela é mais bonita que o parque mineiro. Loura, um sorriso de 88 teclas, praticante assídua de Pilates, Ioga, Caratê e Dança do Ventre. Quando ela sorri, Deus toca “Love is a Many-Splendored Thing”. E jornalista, escreve melhor que Susan Sontag. Ou seja: se houvesse mesmo uma política séria de controle de armas no Brasil, ela teria que andar com porte de Paulinha na bolsa.

Então Paulinha Inhotim é linda. E só namora com feio. Ela mesmo faz questão de divulgar, com orgulho: o rosto do meu namorado atual parece Marte. Um dia, Paulinha Inhotim estava dando sopa no bar, eu sentei do lado dela – credenciado pelo fato dela conversar com feios. Quis entender a preferência.

Primeiro, acho importante definir o “feio”. Há montes e montes de pensadores que discutiram o assunto. Platão passou a vida tentando precisar o belo, pra em oposição saber o que é feio. Aristóteles foi outro. Nietzsche achava que o feio era o declínio do bonito, portanto todos seremos medonhos na hora da morte. Pra Marx, não existia o feio – porque se o sujeito tem dinheiro, ele fica lindo. Umberto Eco resolveu razoavelmente bem: se o belo é o consagrado, o aceito por todos, então o feio é aquilo que todo mundo desaprova. Aí, pronto. Se tem a ver com aprovação, com o botão curtir do Facebook, eu consigo me defender numa conversa.

Então sentei do lado da Paulinha. Puxei logo o assunto. Ela me tratou com atenção. Ficou orgulhosa quando eu disse que o namorado dela é feio. Não levou como ofensa, pelo contrário. E me explicou o que os feios têm.

Pra começar, o homem bonito só fala dele. Está tão acostumado ao aplauso geral que acha que é sempre o principal assunto do mundo. O feio, não. O feio parte da crítica negativa, escuta – e aí se vira pra inverter a situação.

O feio se reinventa, muda o jogo. Quem cresce acostumado com a rejeição não pára na primeira recusa. E, ao insistir, dá valor à mulher. Mas como insistir pode ser um troço chato, o feio se prepara. Estuda pra pensar uma tática sedutora. A moça gosta de poema? O feio decora Drummond (enquanto o bonito se acha a própria poesia).

O mal-diagramado investe em outras atividades, diversifica para distrair a atenção do rosto. Ésopo, o das histórias, era mais feio que a fome. Alguém lembra que ele era caolho, corcunda e provavelmente corinthiano (porque grego)? Não: as pessoas só falam da “A Cigarra e a Formiga”. Logo, hoje, Ésopo é lindo como uma fábula. A vida o absolveu.

Mas o principal do feio, segundo Paulinha Inhotim, é a coragem. A maioria dos homens não tem a bravura necessária para conversar com ela. O atual namorado da Paulinha não só puxou papo, como também convidou pra sair e – suprema macheza – deu o bote.  Confiança, desde que não vire soberba, agrada. A mulher se sente protegida, a esposa de um lutador de MMA.  E a fama que o feio traz ? Paulinha entra com o namorado num restaurante e todo mundo olha pra ela, perguntando com os olhos: o que este cara tem ? E as hipóteses vão da inteligência superior à centrimetragem heroica.

O feio é vira-lata: se defende nas ruas. Se precisar, revira o lixo para alimentar a amada. Quer nobreza maior que essa ? – perguntava Paulinha, segura e bem nutrida, antes de pedir mais um drinque.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Saudade a dois



 Fabrício Carpinejar


Imagem: Reprodução



A saudade tem prazo de validade.
Não pode permanecer muito tempo guardada. Não pode permanecer muito tempo não sendo correspondida.
Depois de aberta e fora do convívio, assim como o leite, a saudade azeda. E não há memória refrigerada para conservá-la.
Quando passa da hora, aquela falta ansiosa e comovente é capaz de se tornar ironia e sarcasmo.
O suspiro se transforma em ofensa – nos enxergaremos tolos e burros por confiar cegamente em alguém e esperar à toa. Reclamaremos nossa idiotice por termos feito uma vigília em vão, por termos esquecido de viver.
Já não queremos que o outro volte, já desejamos que ele nunca mais apareça em nossa frente. Violentaremos as lembranças, fecharemos a reza.
A ternura de antes será trocada pela raiva de não ser atendido. Mudaremos a personalidade de nossa conversa, de doce para ácida. Pois o segredo (a saudade é um segredo!) que nos alimentou durante meses não fora respeitado.
Infelizmente, a saudade apodrece.
Quando deixamos de pedir a presença para cobrar a ausência. É sutil o movimento. Toda a atenção dedicada ao longo de um período começa a ser vista como desperdício. Não aconteceu retorno das juras, nem o estorno das expectativas.
Você mandou centenas de mensagens, renunciou saídas com amigos e bares, teve uma vida discreta e fiel, só para honrar uma despedida, e percebeu que, no fim, sempre esteve sozinho na saudade.
Saudade é como o amor. Perece quando não é a dois.
Aliás, quando a saudade não é a dois, deixa de ser saudade para se descobrir solidão.
A saudade é o que guardamos do amor para o futuro. É o que deixamos para amar no futuro.
Nada dói tanto quanto um amor que não vingou após os cuidados do plantio.
Nada dói tanto quanto a saudade que envelhece, uma saudade que definhou pela indiferença, que não foi valorizada pela nossa companhia, que não desembocou em festa.
Nada dói tanto quanto promessas feitas gerando ressentimento.
A saudade não é eterna. Acaba quando percebemos que o amor era da boca para fora, que a urgência era interesse, que a necessidade era falsa.
A saudade é uma esperança de amor. Precisa ser consumida rapidamente, não mais que três meses. Senão, nos consome e nos estraga.

 - Trecho do livro Me Ajude a Chorar


O livro você encontra aqui: http://migre.me/kUyRk

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Mussum e o País ingênuo que não existe mais


Vinte anos após a morte do humorista, a sua imagem é hoje usada por quem se ressente por não poder esculachar minorias sem provocar ofensas.

Os Trapalhões
 Marcelo Braga/Flickr
Grafite inspirado no quarteto Os Trapalhões, sucesso dos anos 1980 na tevê brasileira

Quem acompanhou as homenagens ao humorista Antonio Carlos Bernardes Gomes, o Mussum, morto há exatos 20 anos, imagina que o Brasil era um lugar puro, ingênuo e agradável no tempo dos Trapalhões. Não havia maldade, não havia patrulha, não havia preconceito. Tal qual Adão e Eva no Paraíso, toda a maldade estava nos olhos de seus criadores, os chatos que inventaram de inventar o pecado e a escuridão e transformaram brincadeira em ofensa e alegria, em constrangimento.
Por algum motivo, o histórico dos Trapalhões se tornou exemplo de como era possível viver em harmonia, sem patrulhas nem amarras politicamente incorretas, até bem pouco tempo atrás. A perda dessa “inocência” é lamentada por quem vê no Mussum, um ator e músico de talento incomparável, o símbolo de um período permissivo, libertário e saudável. Um tempo em que o da poltrona podia ver um negro alcoólatra sacaneando um cearense cabeça chata, que sacaneava o travesti desbocado, que sacaneava o negro banguela.
É sempre delicado analisar, de forma isenta, o que formou e faz parte da nossa memória afetiva. Os Trapalhões são parte dessa memória, pelo menos da minha, que passei boa parte da vida chegando em casa ansioso depois dos passeios de domingo para assistir ao programa da TV Globo. Até hoje me pego rindo à toa das esquetes, algumas disponíveis no YouTube graças às almas mais altruístas. Mas me incomoda um discurso comum entre os antigos fãs do quarteto: naquele tempo não tinha maldade. Como me incomoda o uso da imagem do Mussum como prova desse discurso: “Olha só, batíamos nele e ele nem ligava”.
Aparentemente não ligava mesmo, e isso torna a discussão ainda mais complicada – algo como “se ele não se ofendia, quem sou eu para me ofender por ele?” Mas, zapeando pela internet, encontrei recentemente uma entrevista antiga do comediante à revista humorística Casseta. Me perguntei se aquela entrevista seria aceita hoje e os porquês. Foi o encontro de dois tipos de humor, que tiveram o seu tempo, e hoje talvez não produzissem o mesmo efeito por um motivo simples: evoluímos. Aos trancos, e não na velocidade ou totalidade que deveríamos, mas evoluímos.
Na entrevista é possível rir em muitos momentos e vivenciar o clima de despojamento da época e do bar onde foi gravada. Mas há uma certa melancolia ao tropeçar no velho humor sexista e homofóbico do Casseta e Planeta, grupo que fez sucesso nos anos 1990 sem que parte dos seus integrantes tivesse saído da fase anal. A cada quatro perguntas, três tinham alguma pegadinha de duplo sentido. Você deu? Sentou? Entrou? É chegado? É de fora pra dentro? E gargalhadas.
Alguém, certificando-se de não estar sendo vigiado, poderia confessar: “Foi engraçado, vai?”. E outros poderiam dizer: engraçado para quem?
Na história dos movimentos sociais, só quem sofreu todos os preconceitos na carne (ou na pele) pode dizer quantos anos foram congelados no tempo graças às piadas que ridicularizavam determinados tipos sociais. Quantos anos de luta e sofrimento foram desmoralizados pela ofensa preservada no estereótipo da bicha louca, do negro burro, do judeu (ou o turco/árabe) muquirana, da vizinha devassa?
No caso do Mussum, apelido dado por Grande Otelo em referência a um peixe liso, a história é um pouco mais complexa. Primeiro porque nem ator nem personagem eram totalmente ingênuos, como hoje parecem ser lembrados. O primeiro aprendeu a se virar desde cedo, quase sempre em grupo, no morro, no bar, na Aeronáutica, no teatro, na roda de samba, no estúdio da tevê. O segundo rebatia provocações e não levava desaforo para casa – “negro é seu passado”.
A negação à questão causava desconforto aos grupos antirracismo já na época. Na entrevista, Mussum comentava a reação do movimento negro a uma frase de Renato Aragão ao ver integrantes de sua família em uma piscina: "Pensei que fosse uma sopa de berinjela”. Mussum dizia não entender a gritaria. Argumentava que também sacaneava os cearenses, caso do colega, chamando-os de cabeça de passar roupa. E que ninguém se ofendia por isso. Talvez seja esse o fator de nostalgia de quem hoje vê no período um tempo de inocência: o tempo em que uma minoria podia sacanear outra minoria em canal aberto e ninguém dizia se ofender por isso.
Na mesma resposta, Mussum dizia não aceitar as críticas de que não ajudava os negros, e citava como exemplo o fato de alimentar vários deles em sua casa. E terminava dizendo estar disposto a debater o racismo apenas em casos de discriminação expressas, caso alguém dissesse, por exemplo, ter sido proibido de entrar em determinados lugares por causa da cor.
A entrevista é de outubro de 1991. Mussum já havia visto e vivido muito da vida. Consolidara uma carreira brilhante com uma generosidade ímpar, como atestam todos os testemunhos sobre ele desde a sua morte. Mas não parecia ter se dado conta a tempo do quanto servia a um discurso violento, que na prática, e fora das telas, provocava mais choro do que gargalhada – ao menos para quem era diariamente maltratado e/ou ridicularizado por causa da cor da pele.
O Brasil dos tempos dos Trapalhões, como o Brasil de hoje, não era um País inocente. Era um País onde a maioria da população era negra ou morena, mas não era maioria nas universidades, nos postos de destaque de empresas, nos gabinetes públicos, nos sistemas de representação, na produção científica, nos tribunais e até nos shoppings. Era maioria, no entanto, nas ruas, nos grupos de jovens abandonados, nos morros, nas cadeias, nas fotos com tarja preta dos jornais.
No Brasil do tempo dos Trapalhões, como o Brasil de hoje, poucos admitiam ter preconceito, e poucos seriam capazes de barrar a entrada de alguém em um espaço público pela cor da pele. Como hoje, e como em outros países, havia quem atirasse bananas para jogadores negros ou mulatos no campo, mas só porque eram, como ainda são, protegidos pelo anonimato da arquibancada.
Ao pé do ouvido, e certificando-se de não estar sendo vigiado, havia, como ainda há, quem colocasse em prática os mecanismos invisíveis de seleção, a começar dentro de casa, na escolha das companhias dos filhos (sobretudo das filhas), no discurso de dois pesos e duas medidas a depender da cor de quem prestava um serviço (ou uma barbeiragem no trânsito ou um chute torto no jogo de futebol) ou nas piadas inocentes que mantinham todos na mesma posição herdada dos avós, quando a escravidão formal fora substituída por outras formas de escravidão.
Naquele Brasil, o personagem negro e alcoólatra sacaneava o cearense cabeça chata, que sacaneava o travesti desbocado, que sacaneava o negro banguela – para alegria dos patrões brancos que não entravam na trama.
O Brasil de hoje não é tão diferente do Brasil dos Trapalhões, mas o acumulado de anos, lutas, instrumentos de políticas públicas, campanhas e debates começam a produzir um mínimo de constrangimento a velhas gracinhas antigamente aceitas e transmitidas de pais para filhos.
Tempos atrás, o integrante de uma banda de um stand up comedy abandonou o espetáculo ao ser chamado de “macaco” por um comediante branco diante de uma plateia de maioria branca. Esses são os tempos de consciência que a casa grande confunde com hipocrisia: os tempos em que os anos de sofrimento e luta não estão expostos para o riso, nem dos amigos, nem da plateia. Uma pena que Mussum não tenha vivido para ver. E uma pena que sua imagem, entre genial e inocente, seja usada hoje para apelos ao retorno de outros tempos: os tempos em que a risada era a única arma disponível contra o esculacho dos séculos de escravidão não abolida.

 Fonte: Carta Capital

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Já ‘pulou um tubarão’?


Imagem: Reprodução. - Fonzie 'pulando um tubarão', no seriado Happy Days.



Estive lendo algumas expressões curiosas essa semana. Encontrei uma particularmente interessante: ‘pular um tubarão’. Maurício Stycer explica sobre a expressão, ‘pular um tubarão’ é um termo bem conhecido por fãs de séries de televisão. A expressão define aquele momento em que o programa que você acompanha já há algum tempo dá uma escorregada gigantesca para prender a audiência. E quando isso ocorre, tudo indica, está começando a sua decadência. O termo foi criado pelo comediante Jon Hein nos anos 90, inspirado numa cena da série ‘Happy Days’. Exibido por 11 temporadas, entre 1974 e 1984, o programa mostrava as aventuras de uma turma de amigos nos anos 50 e 60, e ficou marcada pelo tom otimista e alegre das histórias. A certa altura da quinta temporada, um dos personagens principais, Fonzie (Henry Winkler), está esquiando no mar e pula por cima de um tubarão, numa cena completamente sem propósito, que marcou uma surpresa e, de certa forma, uma ruptura com o clima ameno do programa.’Pular o tubarão’, como quase tudo que diz respeito ao universo da televisão, é uma sensação pessoal, subjetiva, que só os fãs são capazes de experimentar”. Deixando de lado a abordagem televisiva do bordão em questão, quantas vezes já ‘pulamos o tubarão’? Tudo caminhava bem e uma ação impensada, sem propósito, uma palavra mal colocada, um encontro que não deveria ocorrer – sim, porque há encontros que nunca deveriam se dar -, ou tantas outras situações fizeram com que a partir daquele momento as coisas perdessem o sentido? Mas isso é uma sensação pessoal, subjetiva. Quem está de fora, muitas vezes, não percebe. Tampouco nós como protagonistas de nossas histórias. Sentimos apenas o vazio, o despropósito, a desmotivação, o sentimento de perda. Viver sem sentido é como morrer sem desfalecer. Parece maluco, mas é a pura verdade. Quantos tubarões não são pulados todos os dias! Vê-se pela ausência de amor, generosidade, paciência, respeito e outras características fundamentais em nossos dias. Desejo histórias reais, equilibradas, com tons otimistas e alegres sem a necessidade de efeitos mirabolantes para se chamar a atenção do outro. Admiro mesmo quem consegue manter uma estabilidade em sua existência, sem rupturas epistemológicas impróprias e inúteis. Maruschka estava certa, menos é mais! A grande questão é que muitas vezes não falamos a mesma língua, no final das contas. Grande Maruschka Lemos de Sá! A verdade é que cansei de tubarões pulados, mesmo antes de conhecer a expressão.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Viver sem tempos mortos



 Trecho do poema "Viver Sem Tempos Mortos" de Simone de Beauvoir, narrado por Fernanda Montenegro.
 Música: Humming Chorus