10 LIVROS PARA CONHECER O BRASIL, SEGUNDO ANTONIO CANDIDO
No ano 2000, a revista Teoria e Debate trouxe em sua edição de número
41 um texto do sociólogo, crítico literário e ensaísta que recomendava a
leituras de obras que, em sua visão, são importantes para compreender o
país:
"Quando nos pedem para indicar um número muito
limitado de livros importantes para conhecer o Brasil, oscilamos entre
dois extremos possíveis: de um lado, tentar uma lista dos melhores, os
que no consenso geral se situam acima dos demais; de outro lado, indicar
os que nos agradam e, por isso, dependem sobretudo do nosso arbítrio e
das nossas limitações. Ficarei mais perto da segunda hipótese.
Como sabemos, o efeito de um livro sobre nós, mesmo no que se refere à
simples informação, depende de muita coisa além do valor que ele possa
ter. Depende do momento da vida em que o lemos, do grau do nosso
conhecimento, da finalidade que temos pela frente. Para quem pouco leu e
pouco sabe, um compêndio de ginásio pode ser a fonte reveladora. Para
quem sabe muito, um livro importante não passa de chuva no molhado. Além
disso, há as afinidades profundas, que nos fazem afinar com certo autor
(e portanto aproveitá-lo ao máximo) e não com outro, independente da
valia de ambos.
Por isso, é sempre complicado propor listas
reduzidas de leituras fundamentais. Na elaboração da que vou sugerir (a
pedido) adotei um critério simples: já que é impossível enumerar todos
os livros importantes no caso, e já que as avaliações variam muito,
indicarei alguns que abordam pontos a meu ver fundamentais, segundo o
meu limitado ângulo de visão. Imagino que esses pontos fundamentais
correspondem à curiosidade de um jovem que pretende adquirir boa
informação a fim de poder fazer reflexões pertinentes, mas sabendo que
se trata de amostra e que, portanto, muita coisa boa fica de fora.
São fundamentais tópicos como os seguintes: os europeus que fundaram o
Brasil; os povos que encontraram aqui; os escravos importados sobre os
quais recaiu o peso maior do trabalho; o tipo de sociedade que se
organizou nos séculos de formação; a natureza da independência que nos
separou da metrópole; o funcionamento do regime estabelecido pela
independência; o isolamento de muitas populações, geralmente mestiças; o
funcionamento da oligarquia republicana; a natureza da burguesia que
domina o país. É claro que estes tópicos não esgotam a matéria, e basta
enunciar um deles para ver surgirem ao seu lado muitos outros. Mas penso
que, tomados no conjunto, servem para dar uma ideia básica.
Entre parênteses: desobedeço o limite de dez obras que me foi proposto
para incluir de contrabando mais uma, porque acho indispensável uma
introdução geral, que não se concentre em nenhum dos tópicos enumerados
acima, mas abranja em síntese todos eles, ou quase. E como introdução
geral não vejo nenhum melhor do que O povo brasileiro (1995), de Darcy
Ribeiro, livro trepidante, cheio de ideias originais, que esclarece num
estilo movimentado e atraente o objetivo expresso no subtítulo: “A
formação e o sentido do Brasil”.
Quanto à caracterização do
português, parece-me adequado o clássico Raízes do Brasil (1936), de
Sérgio Buarque de Holanda, análise inspirada e profunda do que se
poderia chamar a natureza do brasileiro e da sociedade brasileira a
partir da herança portuguesa, indo desde o traçado das cidades e a
atitude em face do trabalho até a organização política e o modo de ser.
Nele, temos um estudo de transfusão social e cultural, mostrando como o
colonizador esteve presente em nosso destino e não esquecendo a
transformação que fez do Brasil contemporâneo uma realidade não mais
luso-brasileira, mas, como diz ele, “americana”.
Em relação às
populações autóctones, ponho de lado qualquer clássico para indicar uma
obra recente que me parece exemplar como concepção e execução: História
dos índios do Brasil (1992), organizada por Manuela Carneiro da Cunha e
redigida por numerosos especialistas, que nos iniciam no passado remoto
por meio da arqueologia, discriminam os grupos linguísticos, mostram o
índio ao longo da sua história e em nossos dias, resultando uma
introdução sólida e abrangente.
Seria bom se houvesse obra
semelhante sobre o negro, e espero que ela apareça quanto antes. Os
estudos específicos sobre ele começaram pela etnografia e o folclore, o
que é importante, mas limitado. Surgiram depois estudos de valor sobre a
escravidão e seus vários aspectos, e só mais recentemente se vem
destacando algo essencial: o estudo do negro como agente ativo do
processo histórico, inclusive do ângulo da resistência e da rebeldia,
ignorado quase sempre pela historiografia tradicional. Nesse tópico
resisto à tentação de indicar o clássico O abolicionismo (1883), de
Joaquim Nabuco, e deixo de lado alguns estudos contemporâneos, para
ficar com a síntese penetrante e clara de Kátia de Queirós Mattoso, Ser
escravo no Brasil (1982), publicado originariamente em francês. Feito
para público estrangeiro, é uma excelente visão geral desprovida de
aparato erudito, que começa pela raiz africana, passa à escravização e
ao tráfico para terminar pelas reações do escravo, desde as tentativas
de alforria até a fuga e a rebelião. Naturalmente valeria a pena
acrescentar estudos mais especializados, como A escravidão africana no
Brasil (1949), de Maurício Goulart ou A integração do negro na sociedade
de classes (1964), de Florestan Fernandes, que estuda em profundidade a
exclusão social e econômica do antigo escravo depois da Abolição, o que
constitui um dos maiores dramas da história brasileira e um fator
permanente de desequilíbrio em nossa sociedade.
Esses três
elementos formadores (português, índio, negro) aparecem
inter-relacionados em obras que abordam o tópico seguinte, isto é, quais
foram as características da sociedade que eles constituíram no Brasil,
sob a liderança absoluta do português. A primeira que indicarei é Casa
grande e senzala (1933), de Gilberto Freyre. O tempo passou (quase
setenta anos), as críticas se acumularam, as pesquisas se renovaram e
este livro continua vivíssimo, com os seus golpes de gênio e a sua
escrita admirável – livre, sem vínculos acadêmicos, inspirada como a de
um romance de alto voo. Verdadeiro acontecimento na história da cultura
brasileira, ele veio revolucionar a visão predominante, completando a
noção de raça (que vinha norteando até então os estudos sobre a nossa
sociedade) pela de cultura; mostrando o papel do negro no tecido mais
íntimo da vida familiar e do caráter do brasileiro; dissecando o
relacionamento das três raças e dando ao fato da mestiçagem uma
significação inédita. Cheio de pontos de vista originais, sugeriu entre
outras coisas que o Brasil é uma espécie de prefiguração do mundo
futuro, que será marcado pela fusão inevitável de raças e culturas.
Sobre o mesmo tópico (a sociedade colonial fundadora) é preciso ler
também Formação do Brasil contemporâneo, Colônia (1942), de Caio Prado
Júnior, que focaliza a realidade de um ângulo mais econômico do que
cultural. É admirável, neste outro clássico, o estudo da expansão
demográfica que foi configurando o perfil do território – estudo feito
com percepção de geógrafo, que serve de base física para a análise das
atividades econômicas (regidas pelo fornecimento de gêneros requeridos
pela Europa), sobre as quais Caio Prado Júnior engasta a organização
política e social, com articulação muito coerente, que privilegia a
dimensão material.
Caracterizada a sociedade colonial, o tema
imediato é a independência política, que leva a pensar em dois livros de
Oliveira Lima: D. João VI no Brasil (1909) e O movimento da
Independência (1922), sendo que o primeiro é das maiores obras da nossa
historiografia. No entanto, prefiro indicar um outro, aparentemente fora
do assunto: A América Latina, Males de origem (1905), de Manuel Bonfim.
Nele a independência é de fato o eixo, porque, depois de analisar a
brutalidade das classes dominantes, parasitas do trabalho escravo,
mostra como elas promoveram a separação política para conservar as
coisas como eram e prolongar o seu domínio. Daí (é a maior contribuição
do livro) decorre o conservadorismo, marca da política e do pensamento
brasileiro, que se multiplica insidiosamente de várias formas e impede a
marcha da justiça social. Manuel Bonfim não tinha a envergadura de
Oliveira Lima, monarquista e conservador, mas tinha pendores socialistas
que lhe permitiram desmascarar o panorama da desigualdade e da opressão
no Brasil (e em toda a América Latina).
Instalada a monarquia
pelos conservadores, desdobra-se o período imperial, que faz pensar no
grande clássico de Joaquim Nabuco: Um estadista do Império (1897). No
entanto, este livro gira demais em torno de um só personagem, o pai do
autor, de maneira que prefiro indicar outro que tem inclusive a vantagem
de traçar o caminho que levou à mudança de regime: Do Império à
República (1972), de Sérgio Buarque de Holanda, volume que faz parte da
História geral da civilização brasileira, dirigida por ele. Abrangendo a
fase 1868-1889, expõe o funcionamento da administração e da vida
política, com os dilemas do poder e a natureza peculiar do
parlamentarismo brasileiro, regido pela figura-chave de Pedro II.
A seguir, abre-se ante o leitor o período republicano, que tem sido
estudado sob diversos aspectos, tornando mais difícil a escolha
restrita. Mas penso que três livros são importantes no caso, inclusive
como ponto de partida para alargar as leituras.
Um tópico de
grande relevo é o isolamento geográfico e cultural que segregava boa
parte das populações sertanejas, separando-as da civilização urbana ao
ponto de se poder falar em “dois Brasis”, quase alheios um ao outro. As
consequências podiam ser dramáticas, traduzindo-se em exclusão
econômico-social, com agravamento da miséria, podendo gerar a violência e
o conflito. O estudo dessa situação lamentável foi feito a propósito do
extermínio do arraial de Canudos por Euclides da Cunha n’Os sertões
(1902), livro que se impôs desde a publicação e revelou ao homem das
cidades um Brasil desconhecido, que Euclides tornou presente à
consciência do leitor graças à ênfase do seu estilo e à imaginação
ardente com que acentuou os traços da realidade, lendo-a, por assim
dizer, na craveira da tragédia. Misturando observação e indignação
social, ele deu um exemplo duradouro de estudo que não evita as
avaliações morais e abre caminho para as reivindicações políticas.
Da Proclamação da República até 1930 nas zonas adiantadas, e
praticamente até hoje em algumas mais distantes, reinou a oligarquia dos
proprietários rurais, assentada sobre a manipulação da política
municipal de acordo com as diretrizes de um governo feito para atender
aos seus interesses. A velha hipertrofia da ordem privada, de origem
colonial, pesava sobre a esfera do interesse coletivo, definindo uma
sociedade de privilégio e favor que tinha expressão nítida na atuação
dos chefes políticos locais, os “coronéis”. Um livro que se recomenda
por estudar esse estado de coisas (inclusive analisando o lado positivo
da atuação dos líderes municipais, à luz do que era possível no estado
do país) é Coronelismo, enxada e voto (1949), de Vitor Nunes Leal,
análise e interpretação muito segura dos mecanismos políticos da chamada
República Velha (1889-1930).
O último tópico é decisivo para
nós, hoje em dia, porque se refere à modernização do Brasil, mediante a
transferência de liderança da oligarquia de base rural para a burguesia
de base industrial, o que corresponde à industrialização e tem como eixo
a Revolução de 1930. A partir desta viu-se o operariado assumir a
iniciativa política em ritmo cada vez mais intenso (embora tutelado em
grande parte pelo governo) e o empresário vir a primeiro plano, mas de
modo especial, porque a sua ação se misturou à mentalidade e às práticas
da oligarquia. A bibliografia a respeito é vasta e engloba o problema
do populismo como mecanismo de ajustamento entre arcaísmo e modernidade.
Mas já que é preciso fazer uma escolha, opto pelo livro fundamental de
Florestan Fernandes, A revolução burguesa no Brasil (1974). É uma obra
de escrita densa e raciocínio cerrado, construída sobre o cruzamento da
dimensão histórica com os tipos sociais, para caracterizar uma nova
modalidade de liderança econômica e política.
Chegando aqui,
verifico que essas sugestões sofrem a limitação das minhas limitações. E
verifico, sobretudo, a ausência grave de um tópico: o imigrante. De
fato, dei atenção aos três elementos formadores (português, índio,
negro), mas não mencionei esse grande elemento transformador,
responsável em grande parte pela inflexão que Sérgio Buarque de Holanda
denominou “americana” da nossa história contemporânea. Mas não conheço
obra geral sobre o assunto, se é que existe, e não as há sobre todos os
contingentes. Seria possível mencionar, quanto a dois deles, A
aculturação dos alemães no Brasil (1946), de Emílio Willems; Italianos
no Brasil (1959), de Franco Cenni, ou Do outro lado do Atlântico (1989),
de Ângelo Trento – mas isso ultrapassaria o limite que me foi dado.
No fim de tudo, fica o remorso, não apenas por ter excluído entre os
autores do passado Oliveira Viana, Alcântara Machado, Fernando de
Azevedo, Nestor Duarte e outros, mas também por não ter podido mencionar
gente mais nova, como Raimundo Faoro, Celso Furtado, Fernando Novais,
José Murilo de Carvalho, Evaldo Cabral de Melo etc. etc. etc. etc.
* Artigo publicado na edição 41 da revista Teoria e Debate – em 30/09/2000
Antonio Candido é sociólogo, crítico literário e ensaísta."
FONTE: http://autoreselivros.wordpress.com/2013/05/18/antonio-candido-indica-10-livros-para-conhecer-o-brasil/
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