segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Sincericídio


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Imagem: Reprodução
Em tempos de amores líquidos, ataques sincericidas ou kamikaze love me tender.Há algum tempo, com algumas pessoas específicas, o termo "sincericídio" tem sido usado no sentido de que, em meio aos limites legais do que é crime em nossa sociedade, e o que foge da seara dessas frágeis arestas da legalidade, tem-se o marginalizado sentimento que, na maioria dos casos, predomina em qualquer tipo de ação, legal ou ilegal.
A tipificação do que, corriqueiramente, permeia o vocabulário e a mídia da legalidade, em sua margem, na qual encontramos as emoções, e assim como tudo que faz parte das relações, desde os tempos atávicos, os sentimentos desenfrados não escapam à responsabilização. Responsabilização que gera uma consequência difícil de suportar quando o limite da condenação por determinada emoção e sua ação, é o lidar consigo, propriamente, e sua parcela social. O sincericídio nada mais é que dar, gratuitamente, sua parcela sentimental de forma que o outro, psicanaliticamente, falando, o outro possa manejar e entender da forma pretendida, por si próprio, o que fazer com essas emoções, geralmente, atiradas em forma de palavras contra quem atingido e seu espaço social. Muitas vezes, os respingos molham desavisadas vítimas.
Quem comete o sincericídio em tempos de relações líquidas que evaporam noir é considerado análogo a um terrorista, mas em específico ao sentimento, um terrorista afetivo. O terrorismo é datado desde a Antiguidade. Os franceses utilizam muito a palavra "horror" para contar sua história. O sentimento causado por um terrorista é a ansiedade. Quando o domínio da palavra passa a ser do outro, o que ela vai sofrer em termos de entendimento e afetação, muitas vezes, com a dificuldade de comunicação com tantas opções de formas de expressão, vai ser o julgamento ou o jogamento no lixo das emoções. O outro ao não corresponder, não responder, não ser afetado pelas palavras serve como um aparato flexível, um boomerang que não absorverá o impacto e a palavra voltará de forma tão veloz e de intensidade equivalentes que o maior atingido será seu próprio parlante.
Muitas pessoas sofrem de sincerícidio. Elas não conseguem se neutralizar na modernidade dos afetos e saem armadas de palavras. Ao avistarem um possível e, muitas vezes, não correspondido, alvo para sua pontaria, atiram. Entre mortos e feridos, o saldo pode ser avaliado como o mais do mais de si mesmo.
Terrorista kamikaze (palavras ao vento é um clichê indispensável) love me tender é um novo termo específico para quem munido de palavras, não desiste de se afetar.

domingo, 17 de agosto de 2014

Sobre a rosa e a recusa



Um negro e uma negra
que perderam o parafuso
resolveram se amar
para perpetuar a raça,
mas só tinham a carne e o corpo
e o ar que era de graça.
Ah! Um negro e uma raça
resolveram apertar os parafusos
para não caírem em desgraça ...
ainda bem, ainda bem
que uma negra e sua carne
guardaram todo o ar
para respirar
sem afrouxar os parafusos
... porque o negro
... porque o negro
... o negro foi embora.

sábado, 16 de agosto de 2014

O que eu faço?



Fabricio Carpinejar












Imagem: Reprodução




Depois que virei palpiteiro amoroso, sou vítima dos esbarrões e dos conselhos a toda hora.

Por detrás de uma gentileza, pode vir um desabafo e aquela pergunta constrangedora ao final:

– O que eu faço?

Estou temendo cumprimentar na rua. Saúdo com “tudo bem?”, e o outro tem a audácia de replicar que não, emenda o que o vem afligindo e chora em meus ombros. Sinto que meu terno é um lenço de papel gigante. Hoje me escondo no costume de acenar com a cabeça e economizar entusiasmo.

Não sou terapeuta, não sou conselheiro, sou um escritor que observa a vida com fome e curiosidade e captura as contradições com facilidade. E só. Não tenho nenhum poder sobrenatural.

Mas, até me explicar, o desabafo já começou. Na dor, as pessoas falam rápido (a alegria, por sua vez, não precisa de muitas palavras).

Recebi uma carona na última semana. Era tarde, chovia, fazia frio, esperava um táxi que não chegava numa rua deserta, uma simpática mulher encostou e perguntou aonde ia.

– Petrópolis!

Ela sorriu:

– Estou indo para lá, vem?

Entrei no veículo, já arrependido. Como explicaria para minha esposa que tomei carona com uma estranha? Preventivamente, liguei o GPS do meu celular na hipótese de ela ser uma psicopata.

Ela nem esperou que comentasse sobre o tempo pavoroso naquela noite em Porto Alegre, desandou a narrar suas desventuras, o status nervoso de seu relacionamento, detalhou conversas, especificou suas expectativas.

– Sou casada há oito anos com um possessivo. “Não sou ciumento, sou possessivo”, diz ele, crendo que é beeem melhor... Eu tenho de obedecê-lo, me adequar a suas vontades e ser companheira com ZERO de reciprocidade!

Foi quando o painel digital de seu carro passou a piscar: anomalia de combustível.

– Visitar a minha família, frequentar a roda dos meus amigos, fazer os meus programas, nunca, sempre a vontade dele... Acabei me afastando de muitas pessoas queridas em função disso.

Foi quando o painel digital de seu carro passou a piscar: anomalia de air bag.

– Perdi minha essência, pois eu o sinto exatamente como um CHEFE! Inclusive eu brinco que sou sua secretária de luxo, pois ele está sempre me solicitando coisas.

Foi quando o painel digital de seu carro passou a piscar: anomalia de poluição.

– Ele não gosta de meu senso de humor, acaba incomodado por eu ser extrovertida e expansiva, me poda o tempo inteiro, odeia chegar aos lugares e notar que eu conheço metade do mundo e ele não. A impressão é que ele precisa me diminuir para brilhar.

Ao descer, ela me encarou, ansiosa:

– O que eu faço?

Só tive tempo de responder:

– Troca de carro!

Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 12/8/2014
Porto Alegre (RS), Edição N° 17888

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Queremos ser normais ou bem comportados?


Tivemos sorte por não ver visionários como Einstein, Newton e Beethoven em uma sala de aula. Com dificuldade de aprendizado, seriam transformados em bons alunos, diagnosticados e medicados

Einstein
Se medicado, Einstein seria um gênio?
“Foco” é a palavra de ordem nas escolas e no mercado de trabalho. Para vencer na vida, a dispersão de atenção para outros interesses além das tarefas do dia a dia é não apenas mal vista: é diagnosticável como um transtorno mental passível de cura. De acordo com uma ala da psiquiatria, essa ideia de “transtorno” parte de duas premissas. Uma é semântica. Ela suaviza a ideia de “doença mental” e passa a ser usada como uma espécie de identidade psíquica por meio de nomenclaturas como “TOC”, “TDAH”, “hiperatividade”, “bipolaridade”, “ansiedade” e “transtornos de humor”.
A outra dita que, por trás da desordem, existe uma ordem. Nesta ordem, o estudante estuda e o trabalhador trabalha. Em nome dela nos medicamos. Cada vez mais e, segundo especialistas, sem que sejam levados em conta os impactos, para as crianças e suas famílias, do diagnóstico e da medicação.
Quem analisa os índices de tratamento à base de drogas psicoativas imagina que o planeta enfrenta hoje uma “epidemia” de transtornos mentais. Nos EUA, uma em cada 76 pessoas são hoje consideradas incapacitadas por algum tipo de transtorno – em 1987, este índice era de uma em cada 184 americanos. O número de casos registrados aumentou 35 vezes desde então.
Segundo o Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA, 46% da população se enquadrariam nos critérios de doenças estabelecidos pela Associação Americana de Psiquiatria. Tais diagnósticos criaram um mercado poderoso de medicamentos psicoativos – o que significa medicar tanto pacientes com crises agudas de ansiedade até crianças diagnosticada com grau leve de “hiperatividade” ou “espectro de autismo”, a chamada síndrome de Asperger. Essas crianças precisam manter o “foco” na sala de aula se quiserem ter alguma chance de passar no vestibular.
A pressão sobre elas em um mundo cada vez mais competitivo cria um consumidor fidelizado: a criança que hoje precisa de medicamento para se manter em alerta será, no futuro, o adulto dependente de medicamentos para dormir. Essa pressão, apontam estudos, tem origem na sala de aula, passa pela sala da direção, chega aos pais como advertência e desemboca na sala do psiquiatra, incumbido da missão de enquadrar o sujeito a uma vida sem desordem.
Mas como cada categoria de transtorno mental é construída e delimitada? Quais pressupostos fazem com que determinados comportamentos e/ou estados emocionais sejam considerados normais e outros, não? Quem definiu que uma criança com foco na sala de aula é normal e uma desconcentrada é anormal? Qual é, enfim, a “ordem” que a prática psiquiátrica visa a garantir?
(...)
Se for esta a normalidade que tanto buscamos, o mundo teve sorte por não ver visionários como Bill Gates, Einstein, Newton e Beethoven em uma sala de aula nos dias atuais. Todos eles tinham dificuldade em socialização, comunicação e aprendizado. Sofriam, em algum grau, de espectro de autismo, e seriam facilmente transformados em bons alunos, diagnosticados, tratados e medicados. O mundo perderia quatro gênios, mas ganharia excelentes funcionários-padrão, contentes e domesticados.

 Fonte:  Carta Capital

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

maria eduarda, joão, pedro, josé, miguel


Imagem: Reprodução

a essas alturas, creio que não haja um ser vivente no brasil com acesso aos veículos de comunicação que não saiba que o eduardo campos morreu hoje pela manhã. eduardo teve cinco filhos com sua esposa, a renata: maria eduarda, joão, pedro, josé e miguel.
em meados de fevereiro de 2012, após entregar todos os meus alunos para seus responsáveis no portão da escola, recebi um chamado da minha coordenadora: ‘ju, a mãe do enzo morreu.’ eu havia acabado de entregar o enzo para a babá toda trabalhada na cara de paisagem, que não deixou entrever em nenhum momento que estava levando o enzo para a casa da tia para que ele e seus irmãos recebessem uma das piores notícias que um ser humano pode receber. o enzo e a camila, sua irmã gêmea, tinham quatro anos. o pietro, seu irmão mais velho, tinha seis.
a morte da mãe do enzo era esperada por todos. após uns dois anos lutando contra um câncer devastador, uma cama hospitalar havia sido instalada em um dormitório da casa, enfermeiros 24h haviam sido contratados, doses cavalares de analgésico começaram a ser ministradas diariamente e, enfim, todos passaram a conviver com a eminência do último suspiro daquela mãe que mal teve tempo de cuidar de seus próprios filhos. quando eu o conheci, o enzo era uma criança amorosa, doce, sensível e muito mais madura do que seu corpinho de quatro anos revelava. sorria pouco e logo se acabrunhava quando ria, como quem tem culpa ou vergonha de se divertir. falava baixo, muito baixo, do jeito que só quem viu sua casa se tornar um hospital fala.
após a morte, o enzo demorou umas duas semanas para voltar a escola. uns dias antes da data marcada, sentei em roda com as crianças para explicar para elas o que havia acontecido:
eu: pessoal, quem sabe o que é morrer?
- é quando a pessoa não existe mais.
- é quando a gente vira estrelinha.
- meu vô morreu.
- meu peixe morreu e a gente enterrou numa caixinha na pracinha.
- meu peixe também morreu e minha mãe jogou na privada!
eu: HAHAHAAHAHAHA é a cara da sua mãe jogar o peixe na privada, amor!
- a mãe do enzo morreu, né teacher?
eu: como você sabe, amor?
- minha mãe me contou.
eu: então, pessoal. é verdade. a mãe do enzo morreu. ela virou estrelinha no céu.
conversamos um tanto esse dia. sobre mamães, sobre morrer, sobre ser legal, atencioso e querido com quem acabou de perder a mãe. foi a deixa, também, para eu contar para eles que o meu pai também era uma estrelinha no céu. quando o enzo voltou para a escola, ele correu na minha direção e disse:
- teacher, eu faltei muito porque a minha mãe morreu.
- não tem problema, amor. eu também faltei muito na escola quando o meu pai morreu.
criamos, eu e o enzo, uma espécie de irmandade-orfã na classe. foi bom para ele saber que não era o único que havia vivenciado a experiência terrível que é perder pai ou mãe. quando o assunto vinha à tona, ele sempre dava um jeito de soltar um ‘que nem seu pai, né teacher?’ que o reconfortava. ainda que ele tenha passado a rir com mais leveza e menos culpa e, no fim das contas, tenha se tornado uma criança que não convive com um doente terminal dentro de casa, quando ele parava quieto era possível perceber uma vaguidão no olhar, uma ausência, um buraco.
agora tem um monte de gente reclamando no facebook das piadinhas, comentários de mau gosto, intrigas etc sobre a morte do eduardo campos. como eu escolho meus amigos a dedo, ‘nunca vi nem comi eu só ouço falar’. mas tem, né? sempre tem, aos montes. e salvo o miguel, que tem três meses de idade, em algum momento os filhos do eduardo campos vão topar com alguns dos comentários de má-fé que estão rolando por essas timelines de meu deus. não bastasse a dor de perder seu pai, estes quatro jovens terão que conviver com a dor de ver sua morte como mote para que um sem número de pessoas destile seu veneno, seu ódio, sua ignorância e insensatez por aí. 
não sei quantos de vocês já perderam o pai ou a mãe. ou os dois. quem já perdeu, há de concordar comigo e com o enzo que essa dor a gente não deseja nem para o pior inimigo. amanhã ou depois, a maria eduarda, o joão, o pedro, o josé e o miguel vão enterrar seu pai e, aos poucos, reconstruir suas vidas com algumas vigas a menos. a gente sabe como é: a vaguidão, o buraco, as vigas, o menos. eu, o enzo, você e você. então, caso você tope com algum comentário maldoso sobre a morte do eduardo campos, dê nome aos bois. pratique a humanidade e a alteridade que dizem estarem perdidas. não estão, não, amig@, a não ser que você não as pratique.
então, pelo sim, pelo não, vamos lá, todos juntos, em uníssono: morreu a paula, mãe do pietro, da camila e do enzo. morreu o juarez, pai dessa que vos escreve. morreu o eduardo, pai da maria eduarda, do josé, do pedro, do joão e do miguel.


Fonte: Filosofinhas

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Seis fatos sobre depressão que todo mundo precisa saber


Morte de Robin Williams e Fausto Fanti levantam a questão sobre a doença que atinge mais de 350 milhões de pessoas no mundo

 

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Serial Lover



Imagem: Reprodução


Existe uma infidelidade mais secreta e menos evidente, que acontece depois do relacionamento. Só acontece depois. É uma traição póstuma, retardatária, residual.

É quando você repete os mesmo lugares, os mesmos apelos, as mesmas confidências com outro. É quando você insiste em escrever e tecer declarações exatamente iguais.

É uma extorsão sentimental colocar um desejo para sua nova companhia como se fosse inédito e que já foi dividido com a anterior.

Pois a paixão só é idêntica para quem não enxerga as diferenças.

É como remanejar presentes, aproveitar alianças antigas.

Você prova que não tem criatividade nenhuma, demonstra a maior apatia: refaz os passeios que já realizou, leva para os restaurantes que freqüentava, as baladas e festas conhecidas, reincide nos roteiros de viagem, destina sonhos e palavras já gastos, reemprega até os nomes aprovados para quando nascessem seus filhos.

Mudou a pessoa, mas não o seu jeito de seduzir. Mudou a pessoa, mas não sua rotina de amar. Mudou a pessoa, mas não seu script.

É uma melancólica sobreposição, desastrada colagem.

Nem precisa cometer o ato falho de trocar o nome do atual pelo ex, porque estará revisitando atmosferas e cenários. Experimenta locações contaminadas por juras velhas.

Não há sensação mais ingrata para seu namorado anterior ao perceber que era mais um. Um qualquer, nem um pouco especial. Um sósia de cenas românticas. Um dublê da adrenalina e dos feromônios.

Você oferece um passado usado sob o disfarce de futuro. Alcança aquilo que foi ensaiado com o antecessor. Não se dá o luxo de disfarçar, o trabalho de maquiar, colocar uma manta no mobiliário da memória.

Recorrendo à fórmula fixa de história feliz, estabelece uma competição imaginária, anula a individualidade do seu par, apaga a invenção a dois e a costura por caminhos surpreendentes e inesquecíveis.

Acredita em sua inocência porque ninguém comentará o assunto. Desfruta da tolerância dos garçons, dos colegas, dos amigos, dos parentes. É realmente um segredo com pequenas chances de ser revelado, porém a consciência não é boba e um dia se vinga.

O que vive está longe de ser amor, é obsessão.

 



Publicado na Revista IstoÉ Gente
Agosto de 2014 p. 48
Ano 14 Número 711
Colunista