domingo, 11 de junho de 2017

Piada de Estimação - Texto de Quinta

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Eu tinha uma piada de estimação. Era bem engraçada e eu a tinha escondida na manga para os mais diversos momentos. Como era engraçada! E como eu ficava engraçado contando-a. Podia contá-la nas mais diferentes situações que era batata, risos ecoariam. Com o tempo eu fui melhorando o modo de contá-la conquistando ainda mais gargalhadas por onde eu passasse. Até que aconteceu o que parecia impossível: a piada perdeu a graça. Mais que isso, ela virou algo absolutamente constrangedor.
Pior, fui descobrir isso na prática enquanto a contava numa roda predisposta ao riso. Enquanto contava fui percebendo seu teor que até então tinha passado batido. E isso é o mais curioso, como eu nunca tinha me atentado para o fato de que a essência daquela piada era de extremo mal gosto e reafirmava estereótipos que eu sempre repudiei? Como eu já estava contando, resolvi ir até o fim. Mas ao invés de risos o que vi foram olhares de constrangimento uns para os outros. E é evidente que o mais constrangido era eu. A primeira pergunta que me veio foi “o que havia mudado naquela piada que antes causava tantos risos?”. E não estou falando de muito tempo. Falo de meses. Mas logo eu entendi que essa era a pergunta errada. A piada não havia mudado. Nem o humor geral. O que estava mudando era nossa cultura. Será?
Essa questão parecia ir além do dito politicamente correto. Parecia uma evolução disso. Era cultural rir daquilo. E agora parecia também cultural repudiar rir daquilo. Algo estava mudando no nosso modo de ser. Ao menos naquela roda que de alguma forma representava uma parcela da nossa sociedade. Será?
Pensei em escrever a piada aqui pra deixar mais claro o que digo, mas concluí que isso é desnecessário por dois motivos. O primeiro é que não preciso passar por tal constrangimento novamente. Nunca mais. O outro motivo é que essa minha ex-piada representa tantas outras de teor parecido e que estão absolutamente ultrapassadas.
Quando eu disse que a piada não faz mais parte do meu repertório tenho que dizer que na verdade aquela era a única piada do meu repertório. Nesse sentido me sinto órfão. Sempre que começavam a contar piadas eu já me preparava pra contá-la. O que vou fazer daqui pra frente? Apenas rir das piadas dos outros é o que me resta. Ou posso tentar decorar alguma outra piada de que goste. Mas sou muito ruim pra decorar piada. Por isso aquela era como que minha filha única. A verdade é que apesar de ser ator e ter textos longos decorados (posso dizer que tenho quatro peças na ponta da língua agora – dentre elas três monólogos), não sou bom pra lembrar de piadas. Nem músicas. Infelizmente não me lembro da maioria das letras das minhas músicas preferidas. Sei de cor apenas meia dúzia do Caetano. Se quiser posso cantar agora. Mas piada aquela era a minha única. E já comecei a esquecê-la. Infelizmente felizmente.
Quando digo que sinto que há uma mudança cultural em curso, é porque não se trata mais apenas do politicamente correto. Acho que ele foi e é fundamental para chegarmos a esse ponto de uma mudança no nosso modo de pensar as relações. E se você reparar bem, os que mais repudiam o politicamente correto são os mais interessados na manutenção daquele status quo. Os que se dizem “cansados dessa coisa de politicamente correto” querem apenas a manutenção dos seus preconceitos. Pra mim esse foi (e é) um caminho importante para superarmos preconceitos introjetados em nossa cultura. Pois bem, seria preciso mudar suas perspectivas. Será?
Claro que ainda estamos longe de superarmos aquilo que por muito tempo fez parte de nós. A cultura do estupro, por exemplo, ainda faz parte da nossa sociedade. Tal como os mais diversos tipos de preconceitos. Mas creio eu que há uma mudança em curso. E pra que essa mudança se efetive e se efetue será preciso muita gente passar por constragimentos como o que passei. Ou sentir na pele o que tais situações antes digna de riso de fato significam.
Desejo que os constragimentos se proliferem cada vez mais até que de fato comecemos uma mudança cultural efetiva.
Enquanto isso estou buscando piadas que ridicularizem os que de fato merecem esse lugar. Está mais do que claro que rir do oprimido é no mínimo ridículo. É preciso rir, rir é preciso. Mas é preciso saber do que se ri.
Alguma sugestão de piada? Prometo cuidar dela com todo meu afeto, como se fosse única. E será. Será?

 - Vinícius Piedade

(Texto de Quinta - publicado todas as quintas-feiras no site viniciuspiedade)

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