TRÊS DIAS ANTES DO AMOR
(Uma lembrança do verão no frio do inverno. Pros amigos.)
Por Miguel de Sousa-Aguiar
 
 
 
    Tenho corrido tanto neste início de século, que mal tenho tido tempo
 de aproveitar a chegada do verão - mas ele chegou, finalmente, e trouxe
 as mudanças de espírito que estávamos aguardando desde o início de 
dezembro.  Chegou meio inesperado, meio molhado, mas ainda assim merecia
 ter sido melhor recebido, reconheço.  Mas a vida vai empurrando a gente
 pra lá e pra cá, um passo desajeitado aqui, um pisão no pé ali, e a 
gente sem se dar conta de que o céu já está se tingindo de outra cor. 
 Dia desses, entretanto, nem sei mais porquê, cheguei na varanda e me 
permiti ficar na contemplação da vida que estava passando ali, embaixo 
da minha janela, numa tarde de janeiro. E que tarde beijava a lagoa, que
 grande iluminador, esse! - eu pensei comigo mesmo. Uma luz perfeita, de
 um amarelo vibrante, uma vontade de ficar debruçado e admirado com 
aquilo tudo, sem nada que quebrasse o mágico daquele momento. Uma brisa 
que se podia sentir mergulhando no corpo e até ver no encrespado do 
espelho d’água. Fiquei lembrando de uma frase de Virginia Woolf, acho 
que está em Mrs Dalloway e ela se refere à beleza da manhã -  como para 
crianças numa praia! - acho que é isso, e eu pensei que aquela tarde era
 o cenário ideal para crianças numa praia e todos os seus castelos de 
areia. E celebrei, ali, em silêncio, o meu festival do estio, acendendo o
 coração e enchendo as narinas com o cheiro que vinha pelo ar. O meu 
festival do estio. Cheio de entidades tropicais, eu ia pensando, sereias
 e índios, sacis e caiporas. Dias antes, com alguns amigos, eu tinha 
assistido a um vídeo de um balé irlandês e ficamos comentando sobre a 
antiga religião celta. De repente, Mary começou a contar a história de 
uma raça de fadas, as pixies, na verdade humanóides alados, que 
habitavam as florestas da Irlanda. Daí que, ali, pendurado na sacada, 
lembrei da história e fiquei inventado as minhas entidades, umas fadas 
brasileiras, cheias de gingado no bater de asas, despudoradas no vôo, 
que eu fui soltando pelo céu da minha imaginação.
 O verão tira as 
pessoas de casa e coloca a cidade num movimento gracioso. A volta da 
Lagoa ia ondulando com o tanto de gente que passeava e corria e  
pedalava, celebrando a temporada. É bom olhar pra gente. Tem gente que 
gosta de observar os pássaros. Eu gosto de observar gente. Fico 
inventando histórias e acontecimentos, partindo de alguém que acabou de 
cruzar o meu campo de visão.  As histórias vão se misturando e trazendo 
outras e, no final, a cidade é cheia de personagens, porque é isso que 
elas são, na verdade. 
 A brisa ganhou corpo e mexeu com tudo lá 
embaixo.  Era só uma ameaça de vento, mas não ia se concretizar. Ela 
soprou a calçada e um bando de folhetos fez um vôo rasteiro, para 
aterrisar mais adiante. Devem ser folhetos de cartomantes e adivinhos, 
eu pensei, porque eles proliferam nesta época do ano.
 Trago a pessoa amada em três dias.
 Eu adoro isso. Trago a pessoa amada em três dias.
 Cada vez que alguém me entrega um desses panfletos, eu me imagino 
sentado numa cadeira, na frente da clássica cigana da bola de cristal. 
Sempre reluto, antes de atirar o papel fora.  Sabe Deus quando é que vai
 se precisar de uma força extra!, eu penso, tentando gravar o número do 
telefone. E tudo porque me fascina essa única frase: trago a pessoa 
amada em três dias.
 O que faríamos, se soubéssemos, com certeza,  
que dali a três dias ia chegar o amor que se foi? Não é tão simples 
assim, se a gente pensar bem.  Se o amor chegasse com hora marcada, na 
estação, como alguém querido que se ausentou por um tempo, esses três 
dias antes do amor iam ser inacreditáveis! Afinal, esta volta com hora 
marcada exige um encontro impecável. 
 Sarita chegou sem se anunciar,
 pousou o queixo no meu ombro, leu o início da crônica e disse que 
estava sem pé nem cabeça. Depois, concluiu que não esperaria os três 
dias estipulados para a volta da pessoa amada.
 - Não esperaria nem um! Nem um minuto! Se não esbarrasse com o cachorro na porta da cartomante, dava a visita por perdida!
  E concluiu, com uma careta de desprezo:
  - Quer saber do que mais? Estou chegando à conclusão de que amor é coisa pra desocupado!
  Saí do computador e abandonei a crônica. Arrastei Sarita pra varanda, 
achando que a visão da cidade maravilhosa à noite, acalmaria aquele 
coração, mas ela não me deu trégua. Praticamente exigiu que eu mudasse o
 rumo da crônica e eu concordei, tentando não alongar a conversação. De 
repente, ela parou de falar. 
  A noite estava linda. A lua, nos 
céus, era uma lua árabe. A tarde generosamente tinha ofertado sua 
perfeição à noite. Havia uns pássaros voando na lagoa. Volta e meia um 
planava sob a luz e era como se ele brotasse do nada, uma mancha de 
branco que estendia as asas, uma, duas vezes, até desaparecer de novo na
 escuridão.    
 - O que é aquilo? – Sarita espichou o pescoço, abruptamente.
 - São pixies – eu disse, sem pensar.
 Ela me olhou com um ar de interrogação e desenhou a palavra, puxando o queixo pra baixo: pi – xies?
  Eu não respondi.
 
 
 
          
      
 
  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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