domingo, 26 de abril de 2015

Aprendendo a morrer

  • Miguel Falabella

    Reprodução


    A gente tem mesmo é que aprender a morrer todos os dias e a renascer quando a manhã se avizinha, antes que o sol nos flagre no processo. A gente tem mesmo que fazer isso e tentar escamotear o coração que anda aos pedaços, cansado dessa ciranda desgovernada. No meio de uma gargalhada, por causa de um caco que a atriz colocou no texto, vem a lembrança da noticia do jornal, lida pela manhã. Uma mulher morreu sem atendimento, no saguão da casa de saúde, porque sua filha tinha atrasado o pagamento da mensalidade do plano. A gente lê a notícia e finge que não leu, é claro; aprende a morrer quietinho, prá poder renascer lá na frente, mas aquilo fica queimando dentro, como uma fogueira desatada na alma, e a gente cansa uma hora, dá um vinco no rosto, que na verdade é uma tradução do vinco do peito, do coração, do corpo todo, repuxado, abusado, triste. Como é que uma coisa dessas pode acontecer? A gente se pergunta, em silêncio, secretamente, com vergonha da humanidade, com raiva de alguém que fez um juramento, que abraçou uma profissão tão bonita, tão nobre, essa de salvar vidas, de estender a mão e ajudar o criador na tarefa de aliviar os sofrimentos do mundo. A gente escuta isso tudo e finge que não escutou, mas morre um pouquinho. Morre e renasce lá na frente.
    Eu já morri inúmeras vezes. Tantas, que já perdi a conta. Morri no dia em que descobri que o amor não era para sempre e morri outra vez, quando soube que nada tinha sobrado dos escombros, nem mesmo aquela amizade que a gente apregoa, na hora da dor. Depois de renascer, eu olhei prá trás e já não reconheci mais o objeto amado. E morri uma outra vez, ao descobrir que o meu coração era tão sem vergonha quanto o de qualquer um. Um coração vagabundo. Um coração capaz de esquecer. Bem fazem os chineses que dizem eu te amo com todo meu fígado! É um órgão mais coerente. Mais afeitos às mudanças de estado. Provocado, ele cospe bílis e sai esverdeando o que outrora parecia ser uma realidade rósea. Eu te amo com todo o meu fígado! Deviam ensinar isso nas escolas!
    Morri outras vezes, também. Morri quando, há muito tempo atrás, um diretor me chamou num canto e me mandou embora da peça que eu estava ensaiando, com as palavras mais cruéis que alguém já me disse: eu só trabalho com gente de talento. Saí daquele teatro com a sensação de que eu não seria capaz de dar dois passos. Saí dali e decretei a morte em vida, o luto desesperado. Mais na frente, quando ninguém estava olhando, eu renasci. Voei para longe daqui e voltei para recuperar a vida e o meu sonho.
    Morri quando minha mãe morreu e renasci na lembrança dela. Morri a cada noite no palco, as mortes das personagens, morri na televisão, de várias maneiras, morri na ficção e sempre me pareceu curioso ver a emoção de alguém ao olhar para aquela morte. Prá mim, sempre foi fácil interpretar esse tipo de cena. Sou calejado nesse ofício. Sei morrer como ninguém. E renasço adiante. Um pouco machucado, o passo vacilante, mas logo me aprumo. É preciso aprender a morrer, senão a vida acaba antes de começar.
    Mas falando em vida, eis que volto para o Rio e encontro outra vez a luz dessa cidade. Não há céu como esse, não há luminosidade como essa, o ar carregado de iodo e sal, o presente que é o olhar para os lados e se deliciar com tanta beleza. Voltar para o Rio é, por si só, um renascimento. A gente cai na estrada, mas o Rio nos dá uma preciosa ajuda na hora da ressurreição. Fico na varanda, olhando para a Lagoa e lembro da luz da Ilha do Governador. Eu juro que não estou exagerando, mas a luz daquele lugar é mágica. Foi ali, no começo de tudo, que eu aprendi a amar a luz. Foi ali que eu intuí que a luz daqueles céus se espalhava prá além da extensão de água e que era preciso seguir viagem. Na época, é claro, eu não sabia que tantas mortes me aguardavam pelo caminho. Tenho até hoje comigo, um pedaço de uma velha agenda, uma bobagem que eu rabisquei há muito tempo, no dia em que fiz dezessete anos. Ali, naquele pedaço de papel, há tanta esperança, tanta alegria e tanta coragem, que me comove olhar para alguém que eu fui, um aprendiz de vida, um aprendiz da morte.
    Termino a crônica com algumas palavras de Gore Vidal. É o fim de seu romance Juliano e eu trago comigo, porque essas palavras aquecem minha alma e me fazem acordar novamente com esperança. Aí vão as palavras de Mr. Vidal:
    "A luz se foi e agora nada mais resta a não ser esperar por um novo sol, um novo dia, nascido do mistério do tempo e do amor do homem pela luz."
    Renasçam! Vale a pena!

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