terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Vida em compotas


 Quantas vidas cabem numa única existência? Tenho me perguntado isso nos últimos anos, quando comecei a perceber as guinadas que a soma dos dias dá; as viradas de página que o tempo permeia.
 Outro dia li numa revista uma entrevista com Maitena Burundarena, escritora argentina, em que dizia que estava em sua quarta (ou quinta? Não me lembro agora...) vida. Pois já tinha vivido tanto, e se transformado tanto, que considerava estar vivendo a quarta vida.
 Daí que pensei que é isso mesmo. Que"etapa de vida" é um termo simples demais para definir o quanto a VIDA pode mudar. Então divagando um tantinho mais (eu e minhas viagens...) fico imaginando a existência toda como um panelão de geleia que a cozinheira apura e divide em compotas: uma, duas... dez, doze... e vamos vivendo cada compotinha_ cada qual com seu sabor_ pra no final termos vivido o panelão todo.
Sendo assim, a compota de hoje não terá o mesmo sabor daquela primeira ou segunda; do mesmo modo que o sabor atual não será igual o último. Também não dá pra misturar, querer um tantinho da que já experimentei na que acabei de começar... isso azeda, amarga, tira a pureza! Cada potinho é singular_ não deve ser embaralhado com saudade ou ansiedade. 
 Gostei disso. Porque a gente se afoba demais. Vai colocando a colher na boca e dizendo de cara que não gosta, que preferia a anterior. Não dá nem tempo de acostumar o olfato, o paladar... pensa logo que não aprecia e pronto, faz azedar de birra. Nãooo... Caaaalma... Dê tempo de esfriar, de passar no pão com delicadeza, de separar o sabor doce que tá lá no fundo... Porque bem lá no fundo, se você souber esperar e sentir, vai reconhecer a essência daquilo que lhe traz paz, as notas do que lhe faz feliz. O problema é que a gente é afobado mesmo, quer tudo pra ontem. E recusa o pote sem experimentar tudo. Tudo mesmo. E fica imaginando que lá na frente vai ter mais requinte. R.e.q.u.i.n.t.e... Que é que vale isso? Se não aprender a degustar tudo certinho, com paciência e aceitação, não há requinte no mundo que lhe baste meu amigo... O que conta são as experiências_interiores_ muito mais que exteriores. Tem muito idoso no segundo pote (cheio de r.e.q.u.i.n.t.e...) e muita criança de dez anos_ felizinha_ na quinta compotinha (de sabedoria).
 Infelizmente tem hora que a gente tem que tapar o nariz e engolir na marra. Fazer o quê se não há remédio? Virão dias em que preferiríamos morrer de fome. Isso é capricho, ninguém lhe pede pra enfiar goela a baixo o pote todo. É aos poucos que a gente prova e aprende. É aos poucos que vai dando certo, ficando melhor, mais degustável... Entendeu?

 Quanto a mim, penso que estou no quinto ou sexto pote.
 Tive uma infância rica. Queria ser artista. Era uma mistura de atriz, bailarina de circo, jornalista e escritora. Sonhava acordada e criava histórias _no papel e na cabeça_ esperando os primos (coitados!) chegarem nas férias pra iniciarmos os ensaios. Enfim, era uma sonhadora... A compota foi doce.
 Por volta dos doze anos experimentei sabores agridoces; mais ácidos, mais amargos. Foi bom (pra evoluir), embora no momento não tivesse consciência disso (nunca temos).

 Depois tive sorte. Sabe gosto de sonho? De apreciar de olhos fechados? Os quatro anos de faculdade foram assim. Uma surpresa cheia de sabores novos, especiais, leves, deliciosos.

 Daí veio a formatura e, ao contrário da anterior, abri um pote de gosto seco, áspero, oco. Foi o começo da vida adulta, o fim das farras, o inicio profissional numa cidade nova, com mais asfalto e menos afeto.

 Mas é claro que vieram dias melhores. E o que era árido tornou-se manteiga... Foi o tempo de casar, viajar, ter filho. O sabor familiar veio trazer alento ao meu paladar. De textura macia, temperatura morna e gosto conhecido, reconheci meu lugar. Não há nada no mundo que conforte mais a alma que sentir-se em casa...

 Hoje, de vez em quando sinto meu mundo de manteiga azedar. Faz parte. Mudam-se as referências, despeço-me de lugares importantes, sinto medo, desesperança, aflição... (como todo mundo). Como criança mimada, recuso algumas colheradas e não cresço como gostaria. Prefiro o que é conhecido, a temperatura morna, o conforto do que é familiar.

 Porém, sei que não será sempre assim. O ciclo da vida impõe despedidas, mudanças drásticas, evolução.  Hão de existir outros potes esperando por mim; e temo que seus sabores não sejam tão fáceis, macios ou confortáveis. Mas quando provar, desejo ter paciência de esperar. De reconhecer lá no fundo o sabor conhecido, ou mais doce que puder ser.

 Porque ele (Ele) estará lá. Só é preciso ter fé, acreditar... e não ter medo de experimentar.
                                                                                                                             
                                                                                                                                FABÍOLA SIMÕES

Fonte: A soma de todos os afetos

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