domingo, 7 de dezembro de 2014

O mal é a falta de atenção




Amiga falando do irmão com quem divide um apartamento:
Ele é uma pessoa boa, linda, incrível, tolerante, generosa… mas não lava a louça! Sai da mesa e deixa a louça lá, como se ela fosse magicamente se lavar sozinha, e quem tem que lavar sou eu! Depois de já ter cozinhado tudo!

Maria Helena Vieira da Silva



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No nosso dia a dia, temos poucas oportunidades práticas de ativamente não-estuprar, não-roubar, não-torturar, não-cometer-genocídio.
Não-matar não é uma decisão consciente que tomo todo dia e da qual posso ter orgulho. Somente não-estuprar não faz de mim uma pessoa boa.

Maria Helena Vieira da Silva



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O mal é a falta de empatia. O mal são os olhos cegos e os ouvidos moucos. O mal é a desatenção e o autocentramento. O mal é aquilo que sinceramente não me ocorre, que realmente não enxerguei, que juro que não ouvi, que não sei como fui esquecer.
O que é um batedor de carteiras comparado ao honesto pai de família que não enxerga nada a sua volta? Que não vê a esposa insatisfeita e desesperada, as filhas confusos e autodestrutivos, a sócia abrindo a garrafa de uísque cada vez mais cedo?
O mal não é arrancar a Anne Frank do sótão: o mal é cruzar todo dia pelo porteiro com o braço engessado e nunca perguntar, nunca se preocupar, nunca nem reparar.
O mal não é ser dono de uma fazenda com duzentos escravos: o mal é ser contra uma nova estação do metrô porque vai destruir as arvorezinhas da sua praça e nunca te ocorrer das centenas de milhares de trabalhadores que não têm carro, passam horas e horas em ônibus e terão suas vidas significativamente melhoradas por uma nova estação.
O mal não é a estrela da morte explodir Alderã: o mal sou eu relaxar do longo dia de trabalho curtindo um filme, depois de um belo jantar feito por minha irmã, e nunca me passar pela cabeça que ela teve um dia igualmente longo de trabalho, ainda por cima fez o jantar e agora está sozinha tirando a mesa e lavando a louça, e ainda perdendo a chance de ver o filme!

Maria Helena Vieira da Silva



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Eu poderia tentar argumentar: foi mal, sou tão distraído, minha cabeça está cheia de problemas, não lembrei mesmo…
Mas a distração que me faz esquecer não é o que me justifica: é o que me condena.
Gostaria de poder dizer que sou uma pessoa boa que tem péssima memória e é muito distraída. Mas não: minha péssima memória e minha extrema distração são sintomas de meu profundo desinteresse por tudo que não diga respeito a mim.
Eu não esqueço os nomes das editoras com quem tenho que fazer networking, o dinheiro que emprestei pra uma amiga, o endereço da nigeriana com quem flertei na praia.
Eu esqueço de lavar a louça (“puxa, fiquei aqui distraído com o filme, agora ela já lavou, amanhã ajudo!”), de assinar o livro de ouro dos porteiros (“putz, com essa correria de natal, nem lembrei, mas tudo bem, ano que vem dou em dobro!”), de responder o email da amiga que pediu minha ajuda (“caramba, essa mensagem está na minha caixa de entrada há três anos, ela já deve ter resolvido sozinho.”)
Maria Helena Vieira da Silva



Mas não tem problema: na minha cabeça, sempre me absolvo. Afinal, sou o protagonista do filme da minha vida e tudo o que eu faço sempre se justifica.
É um de tantos paradoxos da vida narcisista: julgo os outros por suas ações, mas quero sempre ser julgado por minhas intenções.
Quando dirijo perigosamente e alguém me xinga, ainda me dou ao direito de me chatear:
'Poxa', será que ele não vê que estou com pressa? Respeito as leis do trânsito todo dia, mas hoje tenho aquela reunião importantíssima!
Não interessa o que seja: ou agi certo (e o mundo tem que reconhecer e me premiar, senão é muita injustiça) ou agi errado, mas por um motivo totalmente válido (e o mundo tem que reconhecer e me entender, senão é muita injustiça).
Hoje em dia, penso o contrário: qualquer comportamento meu que precise ser justificado ou racionalizado já está por definição errado.
Mais ainda: talvez eu não seja uma pessoa boa.

Maria Helena Vieira da Silva



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Ser bom é não é apenas ajudar minha irmã a lavar a louça.
Ser bom é tornar-me uma pessoa para quem seria intolerável sentar para assistir um filme enquanto minha irmã lava toda a louça sozinha.

Maria Helena Vieira da Silva



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Minha ex-mulher é de uma pequena e próspera cidade no interior da Amazônia. Veio morar comigo no Rio e se deparou, pela primeira vez, com a população de rua em nossas calçadas.
Nunca amei tanto minha ex-esposa quanto naqueles momentos em que a mera visão de uma criança de rua já era o suficiente para levá-la às lágrimas.
Sabe por quê? Porque é.
Com o tempo, para não enlouquecer, para poder funcionar como ser humano, minha ex-esposa foi criando a mesma couraça de insensibilidade social que quase todos os cariocas e paulistanos já trazem do berço.
É uma educação do olhar: você se treina para não ver, para não se importar, para não cair de joelhos paralisada pelo horror.
Mas, se precisamos ser monstros insensíveis para funcionar em sociedade, talvez essa sociedade é que não devesse funcionar.
Talvez fosse o caso de derrubar e fazer outra.

Maria Helena Vieira da Silva



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Esse texto foi reescrito e republicado em janeiro de 2014, para melhorar a argumentação, excluir trechos fracos e tornar a linguagem menos sexista. Confira aqui minhas dicas pessoais sobre como escrever de forma menos sexista.
Maria Helena Vieira da Silva



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As ilustrações desse texto são obras da artista portuguesa Maria Helena Vieira da Silva (1908-92), atualmente em exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // se gostou, assine minha newsletter e receba meus novos textos por email

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