DA ARTE DE AMAR O ESTRANHO QUE PASSA
Miguel Sousa-Aguiar
Corre o sol pelo asfalto, descendo a Rua Augusta, como água na
corredeira, jogando luz nos cantos, amarelando tudo, um sol repentino,
um sol de buzinas, um sol de rostos anuviados que se abrem num ou outro
sorriso ao vez a luz chegar. Corre a menina de negro, os cabelos
vermelhos, os olhos pintados, uma dezena de brincos no nariz, como uma
jovem de alguma distante tribo africana. Ela passa por mim olhando
fixamente para a frente, como se perseguisse uma presa, os olhos
escondidos atrás da grossa camada de maquiagem. Atrás dela, corre a dona
de casa, alguns quilos acima de seu peso, lutando contra um cabelo que
teima em lhe cair sobre os olhos, arrastando uma menina de olhar
sonhador. Ela esboça um sorriso triste e arrasta a criança rua abaixo,
olhando de esguelha para as vitrines cheias de roupas para mulheres
magras. E ainda passa correndo o homem de terno escuro e têmporas
grisalhas, uma ruga profunda no meio da testa, uma determinação nos
passos que chega a assustar.
Eu tomo mais um gole do café- forte,
amargo, cheio de lembranças em seu aroma – e observo o grupo de
funcionárias do salão, todas de branco, como um bando em revoada, gritos
agudos e braços que se agitam ao mesmo tempo, enquanto correm para
atravessar a rua movimentada. Mal tocam o pé na calçada e a frota de
carros brilhantes toma seu lugar, correndo ladeira acima, enquanto o sol
corre no sentido oposto. E corre fumaça, corre criança com fome, correm
mulheres ricas com arcos dourados nos cabelos, japonesas, coreanos,
judeus ortodoxos de chapéus negros e cachos balançando ao vento.
O
café termina e eu continuo sentado, ali, os olhos fixos na rua que
ondula com a respiração das gentes que vêm e vão – e eu brinco de lhes
adivinhar os sonhos, inventar histórias sobre este ou aquele, perceber
um detalhe curioso que vai para o livro das particularidades de ser
humano. Esta observação cotidiana faz muito bem. É como um exercício da
alma este olhar para a gente a sua frente, ao invés de não enxergar o
outro, que é como somos ensinados a nos comportar. Um longo aprendizado
este, o da arte de amar o estranho que passa.
O jovem chinês,
recém chegado a São Paulo me oferece relógios, cremes, óculos de sol.
Salta sobre mim como um tigre faminto, abrindo a mala surrada e
produzindo quinquilharias e cosméticos. Vai falando uma mistura de
inglês estropiado, português e uma linguagem corporal intensa. Eu acabo
comprando um par de óculos e ele despenca ladeira abaixo, feliz como uma
criança, sacudindo a cabeça, em agradecimento.
Observo seu corpo e
percebo que ele corre de forma graciosa. Há um encanto em sua figura
magra, a mala parecendo muito mais leve do que realmente é. Ainda pára
na esquina e acena: e o gesto traz uma certa atmosfera chinesa, quase
uma estampa: lanternas vermelhas e revelações trazidas pelo ópio,
deitado nos fundos de um cabaré, enquanto a garota de cabelos negros e
lisos, aquela que tinha uma tatuagem de dragão na base do pescoço, fuma
atrás da cortina de contas de cristal.
A arte de amar o estranho que passa.
É quando conseguimos ir além do sexo, além das nossas repulsas, além
dos nossos medos. É quando conseguimos olhar além, quando somos capazes
de entender a santidade de alguns eleitos, aqueles que foram ungidos e
que nos ensinam a difícil arte de viver, na totalidade, cada novo dia
que nasce, ainda que ele não lhe traga nenhum grande acontecimento. Amar
o movimento da areia que corre por entre o vidro da ampulheta, a
serpente emplumada do nosso destino previsível. Amar o gracioso meneio
dos cabelos das garotas do elenco, cantando Adeus, Batucada - lenços
brancos e despedidas. Sempre despedidas, porque é disso que é feita a
nossa existência, não vamos nos iludir. Vivemos a despedida de cada dia,
antes mesmo que ele venha à luz.
Mas tudo parece estar no lugar
certo, quando o homem canta e celebra, quando Stella corre para Soraya,
que estende um olhar para Agnes que, por sua vez, eleva aos céus sua
voz rara e com ela vem Germana, Sheila, Isabela, Janaína, Rita, mulheres
do Brasil, cantando essas jóias do nosso cancioneiro. Os rapazes,
encantados, com as vozes de mães e amantes e companheiras, respondem com
o tom grave dos queixumes e a música pousa na alma com uma tal
propriedade, que é como um beijo cada nota que chega pelo ar.
Estou
amando um punhando de canções. Estou amando um elenco de talento.
Estou, talavez por causa de tanta graça recebida, amando o estranho que
passa. Começo a engatinhar nesta arte tão pouco difundida, mas com
alguns bons praticantes em todos os continentes. Bem mais difícil para
nós, corações urbanos marcados com as grifes, rótulos e etiquetas da
nossa existência vulgar. Difícil, mas não impossível, eu penso assim.
E, talvez por isso, eu me sente aqui, como alguém em uma margem,
olhando o sol que corre pela Rua Augusta, bebendo outra xícara de café,
olhando para um par de óculos que eu jamais irei usar, mas que fez um
jovem chinês sorrir na manhã de buzinas e carros brilhando. Essa é a
idéia da coisa.
A arte de amar o estranho que passa. Ainda que não saibamos ao certo de que modo fazê-lo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário